quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Medonho

João Marcelo, um mês depois de completar 4 anos, amuado:
- Pai, minha mãe disse que eu sou medonho.
- Meu filho, você mexe muito nas coisas, você não obedece quando a gente fala... Você é medonho, sim.
Ainda mais amuado:
- Eu não sou medonho não! Eu sou um cara legal.

Um texto de Peter Berger

Leio um texto de Peter Berger, de 1992, publicado no Brasil dois anos depois, na revista Diálogo (nº 1, vol. 27). O texto se chama Sociologia: um desconvite? Professor na Universidade de Boston, Berger escrevera em 1963 um livro chamado Convite À Sociologia, traduzido no Brasil como Perspectivas sociológicas. Ele produziu muitos estudos interessantes, alguns deles definitivos (se não for temerário falar em estudo definitivo quando se fala em ciências sociais) e bem conhecidos, como é o caso de A construção social da realidade.
O texto de Berger analisa, de certo modo, a trajetória da sociologia, nas décadas posteriores a 1960, seus percalços e resultados. Sua visão é meio melancólica, suas conclusões são um tanto sombrias. Ele insiste, como tantos outros, em tratar do método. Mas é do método, de fato, que se trata. Este é um problema central em qualquer ciência, e de modo muitíssimo particular nas ciências sociais. O que ocorre é que o problema do método está completamente resolvido nas ciências da natureza: observar, contar, estabelecer conexões com a teoria e generalizações são mais ou menos estes os passos estabelecidos, submetidos à regra geral da objetividade. Qualquer jovem pesquisador em biologia ou física é capaz de distinguir com precisão se um texto de sua área é científico ou não. Nas ciências sociais há gente que advoga a supremacia do subjetivo na observação e, em consequência, na interpretação do observado, que recusa qualquer quantificação e que estabelece generalizações a partir de fatos muito pouco representativos. Em síntese, como observar o fato social é ainda uma questão em permanente formulação. E isto provoca consequências muito sérias para os resultados da contribuição do sociólogo ao conhecimento. Há, com toda evidência, na metodologia adotada pela maioria dos sociólogos, uma ruptura com o programa anunciado na obra de Durkheim e de Weber, o de uma sociologia compreensiva, fruto do esforço do estabelecimento de postulados claros e escorada em fatos. A nostalgia de Berger reflete a constatação desse distanciamento. Lembra um pouco o esforço quase solitário de Boudon em ressaltar nos clássicos esse rigor metodológico, sem o qual a sociologia permanecerá à deriva.

As duas culturas, de C. P. Snow

Recuperei o livro As duas culturas, de Snow. Li-o há uns seis anos, emprestado de uma amiga professora de Serviço Social. Julgava tê-lo devolvido. Reencontrei-o na semana passada, no fundo de uma estante. Com a existência hoje da Estante Virtual, encomendei dois exemplares (um para Carlos Ruiz), e já os recebi, cinco dias depois de concluir o pedido. É um livro pequeno, mas essencial, célebre, fruto de uma conferência proferida na Universidade de Cambridge (Inglaterra) em 1959. Snow trata, numa linguagem claríssima, de raciocínios retos e argumentação simples, da distância de percepções e de conhecimentos existente entre pesquisadores das áreas científicas e estudiosos das letras e da cultura. É leitura fundamental, para quem tem visto esse fosso se alargar sempre mais e mais, sobretudo pra nós, no Brasil e na UERN, que estamos no curso da construção da universidade como instituição especializada na produção de conhecimentos. Isto aqui não é uma resenha, é apenas uma nota para chamar a atenção de quem não conhece o livro. Muitas observações do autor, muitos aspectos de sua análise poderiam ser destacados. Não é o caso, aqui. O destaque que faço é para o fato de que a natureza humana é a mesma em qualquer latitude e em qualquer época. O que leva o debate acadêmico para direções que muitas vezes o negam. Veja-se o que diz Snow a respeito desse debate:
“Entre os comentários que se teceram até o presente, houve uma manifestação incomum que quero mencionar somente para tirá-la do caminho. Uma parcela pequena, muito pequena mesmo, das críticas veio carregada de injúrias pessoais em níveis anormais; na verdade, eram tantas num caso que as pessoas responsáveis por sua publicação em dois meios diferentes de comunicação me procuraram pessoalmente com o intuito de obter o meu consentimento. Tive de lhes assegurar que não pretendia propor uma ação legal. Tudo isso me pareceu bastante estranho. Em qualquer debate o normal é que surjam palavras duras, mas não é comum, pelo menos segundo a minha experiência, que elas beirem o limite da difamação.
No entanto, o problema de como comportar-se nessas circunstâncias é facilmente resolvido. Vamos supor que eu seja chamado, publicamente, de cleptomaníaco necrófilo (selecionei cuidadosamente duas alegações que, pelo que sei, não foram feitas). Tenho exatamente duas alternativas. A primeira, que em geral é a que prefiro escolher, é não fazer nada. A segunda é, se o aborrecimento se mostrar intolerável, processar o difamador. Existe uma alternativa que ninguém pode esperar de um homem são: isto é, discutir solenemente os argumentos, arranjar certificados de Saks e Harrods dizendo que ele nunca, de acordo com seu melhor julgamento, roubou um único objeto, obter atestados assinados por dezesseis membros da Royal Society, pelo chefe do Serviço Público, por um juiz do Tribunal de Apelação e pelo secretário do. MCC, afirmando que eles o conhecem quase a vida inteira e que nem mesmo depois de uma noitada o viram, sequer uma vez, espreitando as cercanias de um túmulo.
Não se espera uma resposta desse tipo. Ela nos rebaixaria ao mesmo nível psicológico do detrator. Temos o direito de evitar semelhante situação. Felizmente, o debate não será prejudicado se ignorarmos críticas desse teor, ou alguém associado a elas. Pois contribuições intelectuais que elas contêm outros já as fizeram, com educação e seriedade”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

João Marcelo e suas razões inventadas

Diálogo com João Marcelo, a um mês de completar 5 anos:
- Vá tomar banho!
Solto a ordem alguns momentos depois do almoço e do retorno da escola, quando seu corre-corre pela sala e o sobe-desce pelos móveis e escada já lhe produziram suor suficiente para justificar uma ida ao chuveiro.
- Não vou!, é a resposta seca.
- Por que você não vai? Me dê uma boa razão – insisto, tentando fazer-lhe enxergar a evidência e incentivando-o a desenvolver razões lógicas.
- Não vou tomar banho que hoje não é dia de brincadeira.
Os termos da relação são francamente sem lógica. A lógica talvez esteja em oferecer uma razão quando ela é esperada, em adequar-se a uma expectativa, sem, no entanto, saber como expressá-la.
De todo modo, a frase, pelo inusitado, me faz lembrar uma observação profundamente inteligente do matemático americano John Allan Paulos: “Não há elo causal entre ‘Deus existe’ e ‘é proibido comer batatinha frita nas sextas-feiras’”.
Será que meu filho vai ser pastor?

Agostinho e a leitura, segundo Bloom

Veja o que aprendi hoje, às 4:30 h da manhã, lendo Harold Bloom, na tentativa de apaziguar a insônia - graças a Deus, rara; às vezes, bendita:

“Além da extensa contribuição à teologia, Agostinho inventou a leitura, conforme a conhecemos há 16 séculos. Não sou o único a assistir, com tristeza, à agonia da leitura, em uma era que celebra Stephen King e J. K. Rowling, em vez de Charles Dickens e Lewis Carrol. Agostinho foi, basicamente, o primeiro teórico e defensor da leitura, embora, sendo um intérprete ético, tivesse repudiado um ponto de vista como o meu, que busca a sabedoria secular somada à experiência estritamente estética, ao mesmo tempo, livremente hedonista e fortemente cognitiva (…) Com Agostinho aprendemos a ler, pois foi ele o primeiro a estabelecer a relação entre leitura e memória, ainda que, para ele, o propósito da leitura fosse a conversão ao Cristo. (…) Pensamos porque aprendemos a memorizar nossas melhores leituras – na caso de Agostinho, a Bíblia e Virgílio, Cícero e os neoplatonistas, aos quais acrescentamos Platão, Dante, Cervantes e Shakespeare, com Joyce e Proust no século que apenas acabou. Mas somos sempre a prole de Agostinho, que primeiro nos disse que somente o livro é capaz de alimentar o pensamento e a memória, bem como a sua complexa interação. A leitura, por si só, não nos salvará, nem nos tornará sábios; porém, sem a leitura, cairemos na ignorância agonizante...”

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Crítica e crítica


Há, sem dúvida, uma grande dose de veneração pela palavra crítica no interior da universidade brasileira. Adota-se a palavra, tomada como palavra de ordem, e abstrai-se o seu conteúdo. Na verdade, importa saber sobre quais bases se constrói a crítica. Evidentemente, tudo pode ser criticado e tudo é criticável, porque para cada coisa há “n” possibilidades de pontos de vista. Pode-se criticar a saia curta de uma mulher por uma razão estética, por uma razão meteorológica, digamos (não combinar com um dia particularmente frio), por uma razão de etiqueta (a solenidade da ocasião não comporta o tipo de traje) ou por uma razão sexo-moral (não é certo uma mulher mostrar o corpo de tal modo). Pode-se criticar a conduta de um deputado de um partido de oposição apenas porque não lhe devotamos nenhuma simpatia, vez que não é meu correligionário, ou seja, critica-se por uma razão político-partidária. Em síntese, posso fazer qualquer crítica sem que ela seja necessariamente verdadeira ou justa. O fato de ser uma crítica não é suficiente para lhe dar status de verdade. E é isso que parece acontecer hoje em alguns setores da universidade: por mais paradoxal que seja, quem bate e rebate no termo crítica perdeu de fato o senso crítico, porque sacralizou a crítica, desenvolveu, por assim dizer, uma visão religiosa da crítica. Adora-se a crítica, estimula-se a crítica a tudo, sem que se imagine que a crítica, também ela, precisa ser submetida a um filtro crítico.
* * * * *
E esse filtro crítico é dado pelo sentido popperiano do termo. Em Popper, crítica significa escolha consciente entre proposições falsas e verdadeiras. É julgamento de uma teoria em relação a outra, no que tange à superioridade ou inferioridade. Portanto, pressupõe recurso à lógica, a distinção mais humana, o patamar mais elevado da comunicação humana.
Usa-se na universidade, sobretudo nos projetos pedagógicos dos cursos, o adjetivo “crítico” (conhecimento crítico, educação crítica, formação crítica) num sentido puramente ideológico, excessivamente politizado e não popperiano. No sentido banal de hoje, conhecimento crítico é aquele que, por princípio, recusa o capitalismo, a sociedade industrial urbana, o Estado liberal e uma infinidade de situações sociais de menor amplitude e relacionadas a esse fenômenos.
Já vivi situações, como professor de Sociologia, em que um aluno vem reclamar de uma nota baixa na avaliação, sob a seguinte argumentação: “Só isso, professor? O senhor corrigiu com atenção minha prova? Viu o que eu escrevi? Eu meti o pau no governo!” Triste compreensão do que é a Sociologia.
O sentido de crítica dado pelo estudante é o do senso comum: criticar alguém, “meter o cacete”, malhar. Sentido popperiano: criticar proposições com o objetivo de estabelecer a verdade. Teoria do conhecimento, e não militância política.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

A Arte de se Convencer, de Raymond Boudon

Apesar de ter tomado a “vacina dos velhos”, gripei. Fiquei um dia acamado, longe do trabalho. Visto por um certo ângulo, bendito dia! - avancei três capítulos na leitura do livro L'art de se persuader – des idées douteuses, fragiles ou fausses, de Raymond Boudon (A arte de se convencer – idéias duvidosas, frágeis ou falsas). Que eu saiba, não há tradução no Brasil. Boudon, pela sua importância como metodólogo das ciências sociais e pela sua interpretação fina e aguçada dos clássicos da Sociologia, é muito pouco conhecido na universidade brasileira. Pouquissimamente reverenciado entre nós. Lamentável. Francês, Boudon não é cativo da sociologia francesa, embora seja hoje, entre os vivos, talvez o maior intérprete de Durkheim e de Alexis de Tocqueville. Ele conhece com enorme profundidade, de leituras no original, a sociologia alemã e a americana (dá aulas na Alemanha e nos Estados Unidos), além da italiana, através de sua original leitura de Pareto. E, fato raríssimo entre sociólogos, possui grande cultura matemática. Num tempo de intenso culto ao irracionalismo, cultivado nos nossos cursos de pós-graduação, certamente Boudon é um estranho no ninho.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Sociologia da Cultura

Há perguntas cruciais para a Sociologia da Cultura. Por exemplo: por que o Rio Grande do Norte nunca produziu, com a profusão do Ceará, da Paraíba e de Pernambuco, numa listagem breve, artistas de envergadura nacional? Ou a seguinte: por que a música popular cearense dos anos 1970 tem uma qualidade infinitamente superior à que se produz hoje no estado? O fato de serem cruciais não significa que são irrespondíveis. Significa apenas que a resposta demanda mais trabalho. E que por isso não cabe na extensão de um micro-artigo. (O que, em última análise, é uma boa desculpa para escapar delas).

Opiniões que ninguém pediu

Bíblia
Pode-se ler a Bíblia de várias maneiras. Pode-se lê-la com os olhos da fé, com os olhos da moral, com os olhos da história, com os olhos da estética. O que não se pode, se se pretende ser uma pessoa culta, é deixar de lê-la.

Tecnologia
A tecnologia, por si só, não é civilizadora. Para espíritos sem formação suficiente para compreendê-la, ela não se distingue da magia.

Computador
Um computador, mesmo que se trabalhe nele oito horas por dia, não transforma um ignorante em sábio. Um livro, sim. Oito horas diárias em contato com um livro revolucionam o indivíduo, reinventam-no.

terça-feira, 17 de março de 2009

Os perigos na universidade

Duas desgraças rondam a universidade: o autoritarismo e o populismo. O primeiro compromete a criatividade; o segundo, o rigor, de onde se alcança a verdade.

sexta-feira, 6 de março de 2009

APRENDIZADO E EXPERIÊNCIA


O exercício de um cargo público só se justifica pelo serviço que presta. O cargo representa um certo poder e a justificativa do poder é o serviço. Para servir, porém, é preciso o aprendizado. Um médico não sai por aí curando, sem a longa preparação de anos e anos de estudo e de prática orientada por alguém mais experiente. Um pianista, sem os longos anos de formação, não pode pretender ser um concertista. Os soldados não chegam a generais no primeiro ano de caserna. Se é assim com as profissões, por que não deve ser assim com a política e com os cargos eletivos?
Por que um reitor e um vice-reitor não devem se preparar longamente para o cargo?
Pretender o cargo sem a formação para o serviço é buscar apenas o poder do cargo.
Há dois episódios na minha vida que, creio, testemunham minha busca de serviço.
Em 1989, recém saído de um mestrado, e com menos de 3 anos na UERN, fui convidado por alguns professores para assumir uma candidatura a reitor. Agradeci a deferência, mas respondi com decisão: “Não se começa uma carreira universitária sendo reitor”. Eu mal tinha experiência de sala de aula, não conhecia a instituição, não tinha maturidade intelectual nem administrativa para ousar o desafio do cargo.
O outro episódio ocorreu quando era pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação. Fui procurado por um colega, pró-reitor de uma universidade estadual do Nordeste, com a proposta de formarmos uma chapa para disputar a direção do nosso fórum. Havia uma chapa já constituída, encabeçada por um colega de grande estatura acadêmica e intelectual, com experiência administrativa no CNPq. Minha resposta foi a seguinte: “A minha universidade é ainda uma pequena universidade. Ela não reproduz internamente a diversidade do sistema nacional de ciência e tecnologia. Nós não temos lá nenhum bolsista DCR, não temos nenhum pesquisador com bolsa de produtividade do CNPq, não temos bolsas de iniciação científica. Desse modo, será extremamente difícil para mim encaminhar certas demandas quando eu não tenho a experiência de vivenciá-las internamente. Em outras palavras, minha candidatura em oposição à de Fulano não faz sentido”.
A chapa já constituída tinha todas as condições de fazer uma boa gestão, como de fato o fez. O que motivava o desejo de uma chapa de oposição era marcar o espaço das estaduais e sobretudo o das universidades do interior. Eu considerei que este não era um bom motivo para justificar uma chapa. E acho que agi certo.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Produção Acadêmica


Você pode ler, na íntegra, na minha página pessoal de professor ou a partir daqui mesmo, o que tenho produzido nos últimos anos. Há artigos científicos sobre globalização, exclusão social, economia do petróleo, renda rural e sustentabilidade em assentamentos rurais; capítulos de livros sobre Vingt-un Rosado e a elite liberal de Mossoró e sobre integração produtiva; textos didáticos sobre a sociologia no Ensino Médio, o desenvolvimento sustentável, a educação contemporânea, a mentalidade camponesa, o método nas Ciências Sociais, o projeto de pesquisa, o ato de aprender, a construção da monografia, as teorias do desenvolvimento; artigos jornalísticos sobre a Petrobras e o desenvolvimento local, Durkheim e a UERN, a qualidade do ensino; palestras sobre democracia e homossexualidade, pesquisa e pós-graduação em pequenas universidades, novas ruralidades, o conceito de universidade; prefácios do livro Economia Política, enfoques sobre a sociedade que produz e se reproduz, do prof. Cristóvão Lima, dos Anais do Encontro SOBER, editorial da Revista Expressão nº 32; traduções sobre o processo de conhecimento, a construção do conhecimento, a constituição da Sociologia do Desenvolvimento, a matemática na Sociologia; e documentos administrativos: Proposta de Recuperação do PRODEMA/UERN.
Diretamente neste blog, você pode ler artigos jornalísticos sobre a universidade e outros assuntos guiando-se pelos marcadores.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

O Grupo Escolar Vidal de Negreiros: pequeno inventário de lembranças

(Artigo escrito em setembro de 2005, a pedido da jovem diretora do Grupo Escolar Vidal de Negreiros, em Cuité, Paraíba, onde fiz meus estudos primários, para responder à pergunta “o que lhe ficou de lembrança do Vidal?” e ser exposto numa festa de ex-aluno a que, infelizmente, não pude comparecer)

Aécio Cândido

É curioso o conceito de educação dado por Einstein: “educação é aquilo que a gente lembra depois que esqueceu tudo”. Como homem de pensamento, Einstein não se interessou apenas pela natureza da luz ou pela relação entre espaço e tempo, mas também pela natureza do conhecimento e por suas formas de reprodução entre os homens. Certamente também é educação a memória dos sentimentos, a retenção das impressões, o gosto que nos deixou a estréia nas práticas e hábitos sociais. O aprendizado pressupõe memória. Um amigo, hoje, físico como Einstein, repete pra mim: aprender é lembrar. Certamente se baseia nisso a teoria da aprendizagem de Ausubel, um psiquiatra ex-professor da Universidade de Columbia, Nova Iorque, chamada de aprendizagem significativa.

O que me ficou do Grupo Escolar Vidal de Negreiros, dos quatro anos de convívio com suas salas, seus corredores, o chão do campinho de futebol, os cajueiros, os coqueiros; com as professoras, Dona Camélia, Dona Ismália, Seu Heleno, os colegas? Um mundo de mulheres e poucos homens. Um balanço apressado, alinhavado a esta altura da vida, diz que não foi pouco o que me ficou, o que não esqueci.

Não esqueci que lá fiz discursos, num tempo em que a oratória era uma arte cultivada. “Sinto-me honrado em ser designado para falar sobre vulto tão importante...”, era assim que começava “meu” primeiro discurso, uma saudação a Vidal de Negreiros, patrono do nosso grupo escolar, e falava do seu papel na história da Paraíba. Esqueci os detalhes do que falei. Ficou a lembrança do ritual, da solenidade do momento, do arranjo das palavras, do nervosismo enfrentado a golpes de encorajamento de minha mãe (o frio na barriga, as pernas trêmulas, a vontade opressiva de urinar). A lembrança do esforço para decorar o texto escrito por uma das professoras, talvez Dona Vera, filha de Seu Zacarias, comerciante que durante muitas décadas alimentou a moda em Cuité com o sortimento de sua loja de tecidos e por algum tempo pôs lenha nos devaneios da juventude com a introdução do primeiro aparelho de televisão na cidade. Devia ter uns 8 anos à época do discurso.

No Vidal - para usar a denominação de hoje, porque no meu tempo se dizia simplesmente no Grupo, e todos sabiam a que lugar a gente se referia -, vi e fiz teatro. Chapeuzinho Vermelho educou minha fantasia em inumeráveis versões.

Não esqueci a forma protocolar de relato adotado numa ata. É que lá havia um grêmio e suas sessões eram relatadas em ata. Marliete Fonsêca, como secretária, era quem as redigia, isso nós já no quinto ano, quando essa fase de estudos se chamava Primário e contava com um quinto ano que nos preparava para o Exame de Admissão ao Ginasial. Para que me serviram as atas de Marliete? Elas me apuraram o ouvido para o manejo da língua e me despertaram para a possível fidelidade do texto. Creio que muito cedo aprendi a distinguir estilos de comunicação escrita.

Aprendi boas maneiras: como se comportar à mesa, como enfrentar com elegância bananas e laranjas, manejando com destreza garfo e faca, quando o costume de casa, que não devia ir à praça, estava mais para a colher do que para esses talheres complicados. Dona Vera de Seu Zacarias, depois Venâncio por casamento com Milton, filho de Seu Benedito, comerciante e industrial do agave num tempo em que essa fibra criava riqueza e erguia palacetes, um homem com charme de governador, mais uma vez ela, era a professora dessas artes de saber comer com distinção, para não ser confundido com outros animais. Camélia Pessoa, num outro sentido, completou esse aprendizado. Diretora dedicada e sem medo de exercer a autoridade que se espera de alguém que tece destinos, impunha a disciplina na fila de entrada para as salas-de-aula, o cumprimento do horário, o respeito ao outro. Estabanados em casa, no Grupo aprendíamos a contenção. Com fama de boa professora de Matemática, infelizmente não fui seu aluno.

Não me esqueci das aulas de redação de Dona Milagres, filha de Seu Benedito Maroca, professora de inteligência fina e didática cativante. A partir de paisagens ou de figuras humanas trazidas por ela em cartazes, praticávamos a descrição. Converter imagens em linguagem escrita foi pra mim um exercício fundante de muitos outros aprendizados na vida. Também aprendi com ela expressões algébricas e, já no ginásio, estudando em colégio interno, surpreendia a muitos colegas minha desenvoltura em lidar com parênteses, colchetes e chaves e com as operações aritméticas neles contidas. Com ela armazenei conhecimentos gramaticais, sobre verbos transitivos e seus complementos, que um pouco mais tarde impressionaram outros professores. “Diga aí o que é um objeto direto”, me incitava o prof. Joabel nas ruas de Currais Novos. Eu explicava direitinho, com ares de professor precoce, embora com certa timidez, e me soava um pouco sem nexo a admiração que causava uma explicação que me parecia tão fácil. E óbvia. Tinha à época 12 anos mal completados. À distância, Dona Milagres era, na verdade, a responsável pelo meu showzinho.

A sopa do Vidal era um espetáculo de comunhão. Não havia merenda escolar como há hoje. O Estado era mais pobre, nossa economia era mais raquítica. Daí, juntávamos nossas pobrezas e tínhamos uma festa. Era como uma festa que eu via os dias de sopa. Um trazia um pouco de arroz, outro um pouco de macarrão, batatinha, cenoura pouco se conhecia, não lembro bem se havia, mas havia tomate e coentro; a carne era rara, mas comparecia. E estava aí uma sopa maravilhosa. A impaciência pelo recreio era maior nesses dias.

O Grupo Escolar Vidal de Negreiros foi a fonte primeira de uma paixão que deu norte à minha vida: a paixão pelo conhecimento. Ele me abriu esse caminho. No Ginásio, pensei manter um caderno em que eu anotasse cada coisa que aprendesse no dia. A intenção resistiu a alguns meses, mas a paixão me acompanha até hoje. Escola pública pode ser boa: o Vidal no qual estudei está aí pra provar.

Medéia: a investigação do humano e a afirmação do teatro

(Artigo publicado no jornal Gazeta do Oeste em 8 de agosto de 2007, Primeiro Caderno, p. 2)

Aécio Cândido

Retorna ao palco do Dix-Huit Rosado a peça Medéia – um fragmento, nesta quinta e sexta-feira. Concebida inicialmente para um espaço minúsculo, de 30 a 40 cadeiras, a peça fez temporada o ano passado numa antiga garagem do Alto da Conceição. No palco do Dix-huit Rosado a encenação funciona também muito bem, embora se perca a proximidade com os atores, a escuta das respirações e a impressão de que também os espectadores terminarão o espetáculo suados. Não dá para explicar muito bem, mas essa quase invasão do palco pela platéia, a imersão nos cheiros e nos ruídos do espetáculo criavam uma mística muito particular e era mais um elemento para nos apaixonarmos por ele.

Porque Medéia – um fragmento é apaixonante. Diante do impacto do cenário, da sombra dos atores em frenético movimento pelo palco, o primeiro pensamento que nos vem à cabeça é o seguinte: o teatro pode se dar ao luxo de dispensar a tecnologia. De fato, Marcelo Flecha, o diretor, não precisou dela para recriar o texto de Eurípedes, escrito há quase dois mil e quinhentos anos.

O que dirá o espectador sobre um espetáculo cuja iluminação, em 2007, dispensa toda a parafernália de refletores, canhões e gelatinas, e, em seu lugar, usa apenas velas, essa invenção tão antiga e tão ausente de nosso cotidiano? Dirá certamente que o efeito plástico de 500 velas acesas é não apenas belíssimo, mas que é a melhor forma de sublinhar o desespero e o mergulho na escuridão de um personagem demasiadamente humano em sua imperfeição. Aí parecerão supérfluos recursos tecnológicos mais sofisticados. Desse modo, o teatro se reduz ao seu essencial vital e só requer a emoção dos atores e a força de um texto para se consumar em ato de comunicação e magia.

Harold Bloom, o grande crítico literário americano, sustenta que a sabedoria só se encontra na literatura. De fato, a imprensa nos dá informação, a ciência, conhecimento; mas a sabedoria quem nos dá é a literatura. É ela quem mais eficientemente nos aproxima dos muitos mundos existentes no interior dos homens e fora deles. Aceito isto, o que dizer do teatro, que é mais do que literatura? Teatro é literatura com alma, vida pulsante pela ação de atores e dos recursos de cena. Medéia, como texto literário, é uma exemplificação contundente desta tese. Talvez não haja outra personagem em que o ciúme, o ódio e a vingança – esses sentimentos tão negativamente humanos - sejam mais intensamente revolvidos. E também tão sem complacência consigo mesma, já que não exita em castigar-se castigando o amante através do assassinato dos filhos. Há uma racionalidade, talvez incômoda, no equilíbrio psíquico, se quisermos falar assim, de Medéia. A personagem se equilibra numa loucura que não perde o senso, numa confusão de sentimentos desvairados em que sua monstruosidade encontra justificativa. Mas tudo isso é literatura. Quem a retira deste campo e lhe dá vida é Tony Silva, mais uma vez magistral em cena, que extrai da alma gritos dilacerantes e os empresta ao desespero dessa Medéia solitária e vingativa. Bela surpresa é a interpretação equilibrada de Damásio Costa. A presença de Marcos Leonardo e de Joriana Pontes acrescenta densidade ao espetáculo.

O desafio de qualquer encenador é encontrar o justo equilíbrio entre a intenção do texto e as combinações que a linguagem do teatro colocam ao seu dispor. A montagem que aqui se vê é um dos espetáculos mais belos, harmônicos e exatos que já se viu e se montou em Mossoró. A beleza plástica da iluminação, convertida em cenário, os movimentos cênicos e as interferências do coro, o ritmo frenético da interpretação dos atores são soluções que dão vida ao belo texto de Eurípedes.

A beleza made in Mossoró

(Artigo publicado na Gazeta do Oeste em 12 de dezembro de 2003, Caderno Mossoró, p. 2)


Aécio Cândido
Tenho um amigo em Açu, músico, que ainda não viu o Oratório de Santa Luzia. Açu é bem ali, a 70 quilômetros, o Oratório está sendo apresentado pelo terceiro ano consecutivo, e eu considero esse desconhecimento, num homem sensível, um pecado grave. Descubro ao longo da semana universitários mossoroenses mergulhados na mesma escuridão. Acho um crime. Disse a meu amigo que, na hipótese de uma falta total de transportes entre Açu e Mossoró, valeria a pena vir a pé. A beleza do espetáculo paga, e com sobras, o sacrifício das doze horas de caminhada. Não acho que exagero. Não se trata de um espetáculo qualquer. O Oratório é o espetáculo mais bem acabado a que a cidade já assistiu. Não é pouco. Mossoró é uma cidade de tradição teatral. A história local registra a atuação de grupos nos anos 60 com montagens de clássicos do teatro ocidental (Édipo Rei, por exemplo) e do teatro brasileiro (Eles não usam black-tie, de Guarnieri, e Dona Xepa, de Pedro Bloch). Os anos 70 retiraram o teatro de cena para dar lugar à militância política, em grande parte inspirada nele. Os anos 80 foram de teatro político, mambembe e militante (Grupo Terra, se me permitem uma auto-citação). Os anos 90 foram de agitação teatral, de ocupação de espaços físicos (o Cine Caiçara) e estéticos (Grupo Nocaute à Primeira Vista). O novo século se iniciou com um ciclo diferente, o dos grandes espetáculos ao ar livre, assinados por um encenador nacionalmente reconhecido (Auto da Liberdade, Chuva de Balas no País de Mossoró, Oratório de Santa Luzia). Em toda esta história, o Oratório é o espetáculo de maior harmonia, equilíbrio e graça. É também o de maior inspiração.

O Oratório reúne, talvez mais por acaso do que por determinação, talentos muito especiais, e o que resulta daí é um grande espetáculo. O encontro de João Marcelino, diretor, com Danilo Guanais, autor da música, Marcos Leonardo, criador do figurino e adereços, Tony Silva, a grande artífice da emoção, e Clézia Barreto, coreógrafa, não é algo que possa acontecer todo dia em qualquer esquina. Encontros desta natureza só de décadas em décadas. Temos aí um conjunto de talentos, de criadores luminosos, que o Rio Grande do Norte, no seu encabulamento de província, ainda não soube apreciar e reverenciar com toda a intensidade que eles merecem. A música de Danilo Guanais é majestosa. No Oratório, ela é responsável por muito da dramaticidade e da emoção do espetáculo. João Marcelino é o encenador cerebral e emotivo, nordestiníssimo e universal. Sua concepção de espaço, de volume, de cor, de movimento, de intensidade emocional produzem um espetáculo que embebeda os sentidos. Quem vê a suntuosidade das roupas e dos adereços não pode imaginar que ali estão canudinhos de plástico, palitos de churrasco, pegadores de roupa, abridores de lata de refrigerante e buchas de louça esculpindo o luxo e a miséria de uma época. É o louvor de Marcos Leonardo à criatividade. Tony Silva vive hoje uma fase luminosa e a maturidade artística construída ao longo de duas décadas de interpretação contínua a coloca ao lado das maiores atrizes do teatro brasileiro. Clézia veste o espetáculo de leveza.

Espetáculos como o Oratório - pela grandiosidade, pelo número de artistas que envolve, pelos objetivos que possui - correm o risco de produzirem uma encenação desigual, sem harmonia, com um ou dois atores brilhando em cima da figuração de gente excessivamente amadora e sem maior expressividade em cena. Não é o caso, absolutamente. O Oratório, em sua terceira versão, é um espetáculo homogêneo, limpo, ágil, afinado, sem desníveis de interpretação. A presença de Tony Silva, num de seus maiores papéis, o da cega Nicácia, tem o brilho fortíssimo de sua marca interpretativa, mas não compromete em nada a interpretação dos outros. O destaque de uma ou outra interpretação fica por conta dos detalhes e dos grandes achados de composição dos personagens, como é o caso da mão nervosa da cega Nicácia, que se abre e fecha freneticamente, lembrando algumas cegas de nossa infância nordestina, ou a voz de baixo de Nonato Silva, sem agudos de qualquer espécie, para compor um bispo que é autoridade mas que também é ternura. Esse equilíbrio é talvez a marca mais admirável do espetáculo.

Mas tem mais. João Marcelino é o mais teatral dos diretores desse novo ciclo. A função do teatro é contar, limitado pelo espaço do palco, uma história para o espectador. Mais do que contar, fazer viver. Para simplesmente contar uma história existe o romance, o conto, a novela. O teatro faz personagens viverem uma história, transitando em vários lugares, expressando variadas emoções misturadas em diversos tempos. Se o cinema mostra, o teatro sugere. Sugere a passagem do tempo, sugere os espaços por onde o personagem se movimenta. E sugestão é transmutação de uma coisa em outra. Daí porque no Oratório, o cavalo é a simulação de um cavalo, com as componentes que o imaginário medieval produziu de um cavalo endemoinhado que serviu ao martírio de uma virgem - botando fumaça pelas ventas e fogo pelos olhos. Esta é a representação verossímil de um imaginário fantástico. Mas isto não é tudo: o cavalo é feito de ferro, com dois tambores de metal como corpo, seguindo um desenho esquemático infantil. O cavalo é, enfim, uma solução teatral. E de soluções genialmente teatrais está cheio o trabalho de João Marcelino. Porque o diretor precisa criar soluções para se sair do impasse que lhe impõe o espaço cênico. Ele só tem um, e esse um precisa ser todos. Ou seja, o trabalho do diretor é tornar inteligível num só espaço todos os outros espaços por onde a história circula.

E como teatro não é só o que ocorre no palco, impressiona que Mossoró reúna uma equipe de produção, Jocelito Barbosa à frente, tão precisa no seu trabalho. Reconheça-se também à COSERN a inteligência e a sensibilidade para investir na beleza, na criatividade e no bom gosto. Se bom gosto e competência se espalhassem em outras áreas da cidade, no setor público e no privado, muito em breve seríamos uma cidade de Primeiro Mundo, para usar uma comparação do agrado de muita gente.

Para onde deve ir nossa capacitação docente?


(Artigo publicado no Informativo UERN de dezembro de 2005, p. 12)

Aécio Cândido e Carlos Ruiz

O ano de 1992 é emblemático para a capacitação docente da UERN. A partir dele, a política da área começou a adquirir um tom mais ousado, o que, junto à contratação por concurso público de professores titulados, deu como resultado uma substancial melhoria no perfil do nosso corpo docente. Em 1995 tínhamos apenas um doutor, hoje temos 66. Isso por si só já é um resultado positivo. Em um pouco mais de 10 anos, a instituição conseguiu instalar um certo potencial de competência para lidar com o saber, entidade privilegiada em torno da qual se desenvolve a vida universitária. Esse potencial, porém, não está se concretizando na atividade certificadora da excelência institucional - a pós-graduação stricto sensu. Temos doutores, 66 deles, e não conseguimos criar, de imediato, nenhum curso de mestrado. Em condições diferentes, com 10 doutores da casa e 3 ou 4 convidados pode-se criar um bom mestrado. E por que não criamos?
Se situações semelhantes podem nos servir de consolo, lembremos então, para citar apenas dois exemplos, que a Universidade Estadual de Goiás tem mais de 100 doutores e apenas 2 mestrados próprios; a da Paraíba, com o mesmo nível de capacitação, só agora aprovou um curso. Estamos todos no mesmo barco - o que pode aliviar a angústia, mas não livrar do naufrágio.

Até agora, a formação de nossos doutores e mestres aconteceu por geração espontânea. E não poderia ter sido de outra maneira. Faltavam-nos lideranças científicas ou, pelo menos, uma certa massa critica de pesquisadores para conduzir uma política indutiva de capacitação docente capaz de produzir, como resultado, nossa própria pós-graduação stricto sensu. Esta é uma das possíveis conclusões que pode ser tirada à luz da experiência nacional e internacional.

A política de capacitação docente está relacionada à necessidade de se formar quadros para a pesquisa. Ela procura, de modo institucional e universalizante, recriar as condições responsáveis pela formação dos grandes departamentos das universidades e de seus programas de pós-graduação ou o surgimento dos grandes centros de pesquisa no mundo. Estes, em geral, surgiram sob a influência de uma liderança acadêmica, que tomou a si a tarefa de encaminhar jovens para a formação doutoral, partindo de uma meta a médio prazo. Foi assim, por exemplo, com o Departamento de Física da Universidade Federal de Pernambuco, que possui hoje o único doutorado nota 7 de todo o Nordeste, isto é, com padrão internacional de excelência. Em torno do prof. Sérgio Rezende, hoje ministro da Ciência e Tecnologia, e sob sua influência, gravitou um grupo de jovens acadêmicos que teve sua formação encaminhada para uma linha de pesquisa bem definida, a física da matéria condensada. Sem contar com lideranças, os departamentos entregaram-se a uma formação caótica, individualizada, que resultou em formações pouco afeitas ao diálogo intelectual e, conseqüentemente, à formação de equipes.

O que fazer agora para que a capacitação docente em nível de doutorado permita criar nossos próprios programas de pó-graduação stricto sensu?

Do corpo docente de um programa de pós-graduação exige-se competência para orientar uma dissertação ou uma tese. E essa competência deve ser comprovada por uma robusta e relevante produção científica em uma determinada área do saber. Quem orienta, vale a trivialidade, deve ser um profundo conhecedor do que orienta, e a orientação acontece em um ambiente acadêmico de alta produtividade. Nós já temos pesquisadores que, isoladamente, reúnem as condições para orientar. São colegas que publicam sistematicamente em periódicos importantes da sua área, que participam de bancas examinadoras de programas de pós graduação de outras instituições, etc. Estes demostram, portanto, estar inseridos na sua comunidade científica. Porém, a UERN, através desses professores, não pode ofertar formação em nível de mestrado e de doutorado. A criação da pós-graduação em nosso país se dá no contexto de uma determinada estrutura de poder. Na CAPES, essa estrutura encontra sua expressão mais transparente nos comitês de área, que atuam na avaliação da pós-graduação. São esses comitês que propõem ao Conselho Técnico Científico - CTC - da Agência o credenciamento ou descredenciamento dos programas. A regra é o CTC, reconhecendo a legitimidade do poder acadêmico dos pares, acompanhar o parecer dos comitês de área.

Desse modo, conhecer os critérios de avaliação de cada comitê torna-se uma obrigação para quem pretende criar, por exemplo, um curso de mestrado. Independentemente da diversidade, legítima, de critérios dos comitês de área, um é comum a todos: a competência de orientação deve ter um caráter coletivo e em um campo acadêmico historicamente estabelecido. Assim como os átomos mostram a sua identidade através de seus espectros, os programas de pós-graduação stricto sensu devem mostrar a sua identidade intelectual através do saber que coletivamente produzem.

Tudo isso cria para nós uma nova percepção: é imperativo que a política de capacitação docente comece a direcionar-se para a consolidação de grupos de pesquisa. São nesses grupos que germina a pós-graduação. Nos anos 1960, nos inícios da pós-graduação no Brasil, era comum que a pesquisa nascesse da pós-graduação. Hoje a lógica é diferente: só se admite a criação de cursos de pós-graduação onde se tem à frente grupos de pesquisadores com certa tradição em domínios bem específicos.

A pesquisa exige dedicação, conseqüentemente, o tempo é um elemento essencial para que se possa realizá-la. Na verdade, talvez o tempo seja menos à pesquisa do que à sua divulgação. Mesmo sem tempo, ou com muito pouco tempo, conseguimos fazer pesquisa de campo nos finais de semana ou acompanhar alguns experimentos em laboratório entre uma aula e outra. O problema é transformar em artigos os dados obtidos. A redação de um artigo é uma atividade mais tirânica, exige concentração e tranqüilidade, e aí entra a necessidade de tempo disponível. Disponibilidade de tempo é, portanto, uma necessidade real para quem deseja se dedicar à pesquisa, e ele falta na UERN.

A instituição universidade, como esfera da moderna divisão social do trabalho, valeu-se do mecanismo da dedicação exclusiva para garantir tempo disponível para o trabalho intelectual. No Brasil, esta é uma conquista recente e, pra sermos sinceros, bastante desvirtuada. Nos anos 50 do século passado, o prof. José Leite Lopes, fundador do CNPq, e mais outros pioneiros da Física no Brasil, lutavam pela instituição da dedicação exclusiva na universidade, para que os engenheiros pudessem sobreviver exclusivamente como professores de Matemática e de outras ciências afins, e daí pudessem se dedicar, além do ensino, também à pesquisa. Na UERN, a concessão de dedicação exclusiva não resultou na institucionalização da pesquisa. É também um mecanismo que precisa ser revisto, se não pra trás, pelo menos daqui pra frente.

Insistimos na importância do aprendizado coletivo. Por exemplo: a redação de um artigo é um ato solitário, mas ela se nutre, antes e depois, de muita interação com os pares. O amadurecimento de idéias, e mesmo a eficiência do texto, dá-se como resultado do debate entre pares. Nenhum escritor maduro é tão seguro do seu texto que dispense a consulta a leitores qualificados. Entre nós, essa troca entre pares ainda é pouco comum. Uma troca que inclui forçosamente a crítica. É preciso perder o medo da crítica, o medo de se expor. A perda desse medo é condição para o conhecimento. Susceptibilidades à flor da pele é sinal de pouca maturidade e de pouco conhecimento do seu ofício. Quem conhece bem seu ofício sabe das dificuldades que lhe são inerentes, e, na apreciação dos outros, é capaz de reconhecer o que precisa ser incorporado e o que pode ser dispensado.

Em resumo: como fonte originária de uma cultura criativa, necessária à universidade, a capacitação docente precisa tomar novos rumos. É preciso, antes de tudo e a esta altura do campeonato, identificar as áreas mais promissoras e investir nelas, prioritariamente, privilegiadamente. Até hoje adotamos uma isonomia, que, embora a muitos pareça o exemplo mais acabado de democracia, não nos conduziu aos objetivos desejados. É preciso, portanto, adotar o princípio da eqüidade, ao invés do da igualdade. Desse modo, privilegiar a seguinte combinação: a potencialidade do departamento ou grupo interdepartamental e o talento do indivíduo. O primeiro pode ser visualizado pelo projeto acadêmico partilhado e pelo número de pesquisadores aptos a realizarem-no; o segundo pode ser avaliado pela produção intelectual do candidato a doutor. São dois critérios basilares para se mudar o rumo dessa política.

O departamento e a capacitação docente


(Artigo Inédito)

Aécio Cândido

Não creio que haja dúvidas de que uma universidade se faz com cérebros. Conta-se que Zeferino Vaz, o criador da Unicamp, costumava enumerar, pela seguinte ordem, os elementos essenciais ao funcionamento de uma universidade: “1º - cérebros, 2º - cérebros, 3º - cérebros, 4º - infra-estrutura...” Como resultado desta lógica, a Unicamp rapidamente ganhou destaque entre as melhores universidades do Brasil.

Sem gente formada em nível avançado, uma universidade permanecerá respondendo apenas a uma parte de suas funções, a de reproduzir conhecimentos. Para produzir conhecimentos, o que se faz através da pesquisa, e para produzir gente com capacidade de criar novos conhecimentos, o que se faz através do ensino de pós-graduação, a universidade precisa investir nessa formação de cérebros.

A idéia de que cérebros se formam não parece ser percebida em toda sua extensão. Falta em geral a visão de que podemos formar cérebros como resultado de uma determinação institucional, de uma política. E essa política de formação cabe hoje aos departamentos acadêmicos.

Há consenso certamente sobre o fato de que a UERN precisa continuar a investir em capacitação docente. Mas esse consenso esbarra aí e não realiza o passo seguinte que é se perguntar: que capacitação docente? Em que os professores do departamento devem se capacitar? Para responder adequadamente a essas perguntas, o departamento deve ter definidas suas linhas de pesquisa. Elas são fundamentais para nortear todo o planejamento do departamento a médio e longo prazo. E como estabelecer uma linha de pesquisa?

Saber como nasceram os laboratórios, os centros de pesquisa e os cursos de pós-graduação nas grandes universidades brasileiras pode nos fornecer algumas pistas. Grande parte deles, na verdade, nasceu como resultado da determinação de um cientista que, aportado numa universidade, começa a formar discípulos e a direcionar os estudos para a área de seu interesse. É o exemplo de muitos departamentos de Física, em São Paulo, no Rio e em Recife. É o exemplo da Antropologia na USP e no Museu Nacional, no Rio. Uma segunda via é, a partir de um certo momento, avaliar os recursos humanos de um departamento já existente e identificar qual é sua “vocação”. A partir daí, intensificar essa “vocação”, reforçando o núcleo existente com a formação de novos quadros.

Diagnósticos têm mostrado que os departamentos universitários brasileiros em geral apresentam uma composição excessivamente fragmentada. Em muitos casos, um departamento pequeno, de, digamos, 15 professores, apresenta 15 formações diferentes. Essa fragmentação de áreas e a dispersão de interesses intelectuais impede de criar grupos de pesquisa e, desse modo, de se ter uma produção de maior alcance. Não há aí nada de novo: é fato conhecido que a possibilidade de diálogo, dada pela posse de saberes semelhantes, que o debate entre os pares é o caldo de cultura para a formulação, o avanço e a fecundidade de pesquisas. A vida acadêmica surge daí, desse circular de idéias entre pessoas que, pela proximidade da formação intelectual, podem julgar a pertinência e a qualidade dessas idéias para o avanço do conhecimento.

O estabelecimento de linhas de pesquisa no departamento visa enfrentar o risco dessa fragmentação excessiva, buscando planejar formações complementares, que possam fecundar pesquisa e ensino de pós-graduação. Em outros termos, no planejamento do departamento, as linhas de pesquisa dizem para onde se deve ir. Elas dirão que cursos de pós-graduação os professores do departamento deverão seguir, dirão também que cursos de pós-graduação poderão ser criados e ainda que grupos de pesquisa se organizarão.

O Plano de Capacitação Docente foi, anos a fio, uma peça de ficção, feita para responder a uma exigência burocrática. Não pode mais sê-lo. Pelo simples fato de que ele é peça fundamental na determinação do rumo acadêmico que se pretende dar ao departamento e, por extensão, à UERN. Desse modo, não deve ser encarado como exigência burocrática, mas como peça do fazer acadêmico.

Formação superior e formação cultural


(Artigo publicado no Informativo UERN de agosto de 2006, p. 12)

Aécio Cândido

Em cidades como Moscou e Londres, os estudantes universitários lotam os teatros, os museus, as livrarias. Há muitos, e esses espaços culturais não se ressentem de falta de público. O consumo cultural é uma necessidade dos estudantes, adquirida na família e desenvolvida na escola. A Universidade Laval, no Canadá, possui no seu campus cinco teatros. E durante o inverno todos funcionam a partir da quinta-feira. Quem os freqüenta? Basicamente os universitários. A cidade de Quebec, onde fica essa universidade, menor do que Natal, tem 25 bibliotecas municipais, nenhuma delas com menos de 30 mil títulos, 56 museus e sítios históricos, quase 100 entidades profissionais de criação artística (companhias teatrais, grupos folclóricos, orquestras, ópera, companhias de dança, etc.). Deve ter perto de uns 20 teatros, sem contar aqueles ligados a universidades e colégios. Esse inventário indica que há um entorno cultural forte e que ele se oferece como complemento à educação escolar.

Que a educação não é exclusiva da escola, que ela ocorre também na família e na “sociedade em geral” sabemos todos nós. A sociologia da educação produzida na América Latina no início dos anos 80 martelou insistentemente essa idéia, usando-a para valorizar o conhecimento espontâneo, informal, sobretudo de estudantes adultos, aprendido fora da escola e para relativizar o peso existencial do analfabetismo. A idéia é interessante, é pedagogicamente fecunda, mas seu excesso, como tudo, gera distorções. E a distorção que ela gerou foi a impregnação de um certo anti-intelectualismo e de uma valorização exagerada do conhecimento espontâneo... na escola. Escola anti-intelectual é mortal para o espírito. Também para o desenvolvimento econômico. O excesso se dá pela adoção apaixonada de, pelo menos, dois pressupostos: o de que tudo que é natural é bom e o de que todo conhecimento se equivale. Daí, tanto faz o conhecimento que desemboca na resolução de uma equação de 2º grau como o conhecimento prático operado por um “menino de rua” para conseguir alguns trocados; não se enxerga conseqüências sociais diferentes entre atores que mergulham na apreciação de uma música de Chico Buarque e aqueles que se acotovelam para uma apresentação do Calcinha Preta. A idéia de elite intelectual e de formação superior como uma formação de elite, em contraponto à cultura de massa e ao senso comum, foi sacrificada em grande medida dentro da universidade. Desse modo, temos produzido gente com formação superior, mas inculta.

É consenso que a boa educação comporta uma formação científica, o desenvolvimento de uma sensibilidade artística e de uma sensibilidade moral e, claro, uma formação profissional. É a isso que se refere a idéia de formação integral do homem. Desses quatro aspectos da formação, dois pertencem mais diretamente à escola, um pertence à sociedade geral (embora caiba à escola iniciar o aluno nos seus estágios mais jovens), e o outro, em grande medida, à família. A formação científica diz respeito à aquisição do pensamento científico, traduzido pelo domínio do método e de alguns conceitos importantes para compreender a ciência e a tecnologia que nos cercam no mundo de hoje. Ela deve provocar a desobstrução da mente em relação à construção do conhecimento. A formação profissional diz respeito à aquisição de competências e de saberes próprios ao exercício de uma dada profissão. Por sua natureza fortemente especializada, dada pelos conhecimentos manipulados e pela infra-estrutura requerida, essas duas formações competem à escola. A formação moral se refere à aquisição de valores necessários à vida social harmônica e isso cabe, em primeira instância, à família. A educação artística, a formação do gosto pelo belo e pela reflexão sobre ele, dá-se no convívio com a cultura, quando esta é capaz de promover uma criação artística de qualidade , isto é, que transcenda o simples entretenimento e desemboque em algo que possa ajudar à melhoria do indivíduo e de sua participação social. Não é o caso entre nós. A produção artística e cultural consagrada pelos meios de comunicação e mesmo estimulada pelo poder público não tem as características aqui referidas. Desse modo, enfrentamos dois problemas: o estudante, em geral, entra na universidade com um forte déficit na sua formação cultural – leu pouco, conhece pouco a literatura, o teatro e o cinema, viajou pouco e pouco contato teve com as idéias mais interessantes sobre o nosso tempo. Este é o primeiro problema. O segundo é que a própria universidade, seus professores, pouco o estimula a perceber que a formação cultural é fundamental para a sua formação superior, ou que aquela daria a esta uma amplitude maior. O que é estimulado, o que lhe é fornecido como acesso é aquilo que a indústria cultural deseja vender. Mas, mesmo em Mossoró, marginal à produção da indústria cultural, temos uma produção artística de boa qualidade. Paradoxalmente, estudantes universitários, público potencial dessas manifestações, não a consomem.

A idéia de flexibilização curricular, que, enfim, começa a tomar forma na universidade, reserva para a FORMAÇÃO COMPLEMENTAR do aluno uma carga horária de 200 horas. A proposta que aqui levantamos – originária de conversas com Carlos Ruiz, Ana Morais e Celito Barbosa – é que os Projetos Pedagógicos dos cursos precisam privilegiar a formação cultural nessa formação complementar. Desse modo, o estudante, independentemente do curso, terá a obrigação de, durante a sua formação, assistir a espetáculos de teatro, de dança, de música (erudita e popular), a freqüentar palestras, etc. A forma de avaliar essa participação, e de evitar que ela se transforme em mais uma boa intenção a entulhar o inferno, não é difícil de ser estabelecida.
A omissão da família – por todas as razões que a Sociologia pode facilmente explicar – e da sociedade geral neste quesito não é razão para a universidade também se omitir, achando-se impotente. Enfrentar desafios aparentemente invencíveis é missão de qualquer elite que se preze.

A filosofia da práxis e a UERN: a noção de planejamento


(Artigo publicado no jornal Gazeta do Oeste em 21 de outubro de 2000)

Aécio Cândido

Filosofia da Praxis é o título de um livro de Adolfo Sánchez Vázquez, pensador mexicano bastante apreciado e citado na UERN, há bons 20 anos, por jovens alunos e professores de esquerda. Livro denso, referência na sua área, trata da razão agindo sobre o mundo, isto é, da razão convertida em ação eficiente, transformadora.

Relembro o livro e a veneração a ele porque a resistência ou, para falar de modo mais brando, o pouco caso feito à avaliação das nossas práticas na instituição e ao planejamento dessas práticas por parte de alguns amigos dessa época parece revelar que estes ou esqueceram o que o livro dizia ou não o leram com a devida acuidade ou, ainda, têm alguma dificuldade de estabelecer a ligação entre um conhecimento abstrato e a realidade que esse conhecimento pode iluminar.

Relembro a definição de praxis, já não sei se dada pelo livro ou posteriormente por algum de seus comentadores, sintetizada numa fórmula simples e engenhosa: praxis = ação/reflexão. A mim, neste momento, basta-me a definição. Ela é sintética, mas contém o essencial do que desejo falar: a praxis não é o fazer aleatório e cego, mas o fazer direcionado, a ação sobre o mundo submetida à reflexão antes e depois de ser realizada. É estranho que isso seja mal compreendido dentro da universidade.

Não é ocioso lembrar que a universidade, desde seu nascedouro, se instituiu como lugar da Razão. E a Razão, na sua versão operacional, persegue a previsão, a antecipação dos resultados, o que, para a instituição, se materializa com o nome de planejamento. O planejamento é a tentativa da razão de tornar o futuro menos indeterminado e desconhecido.

Essa visão do planejamento é moeda corrente em qualquer empresa ou, em sentido menos estrito, em qualquer corporação. Não tenho nenhuma simpatia por aqueles que pensam que a universidade pode ser gerida como uma empresa qualquer e que, como tal, indicadores tangíveis, resultados palpáveis e, em última instância, aquilo que pode ser convertido imediatamente em moeda seja o aferidor de sua eficiência. Mas também não creio que a razão esteja com aqueles que pensam que a universidade é uma instituição tão singular que bastam alguns princípios gerais, abstratos e difusos para guiar bem seus atos. Contra os primeiros, acho que boa parte do dinheiro investido na universidade é para ser “perdido” mesmo, no sentido de que a curto prazo nenhum produto negociável no mercado pode surgir daquele investimento; contra os segundos, acho que todo princípio pode ser traduzido por indicadores, ainda que aproximados, senão, para usar uma imagem do discurso religioso cristão, permaneceremos ad infinitum avalizando a ruptura entre fé e obras. Por fim, ainda contra os segundos, creio que o que se pode quantificar e medir deve ser quantificado e medido.

Mas por que tanta resistência ao planejamento dentro da nossa universidade?

A resposta neste caso, como em tantos outros, deve ser buscada na esfera da cultura. Penso enxergar em nossa cultura vários sinais de recusa ao planejamento e, em escala mais ampla, ao pensamento racional. O pensamento racional associa o indivíduo a suas ações. Isso é o avesso do pensamento religioso, mágico, sempre disposto a atribuir a um deus criador a responsabilidade pelos atos da criatura. E, paradoxalmente, o pensamento de esquerda no Brasil em grande medida alimentou essa cultura. Onde havia Deus colocou-se o Estado e as forças que o regem como determinantes da ação dos homens. Também aí não há lugar para o indivíduo. Num lado, o crente se acha sem merecimento para atrair a atenção de Deus e resigna-se ao destino atroz; no outro, o indivíduo se sente impotente e imobilizado diante da determinação avassaladora do Estado que, manipulado, escreve para esse indivíduo um roteiro de catástrofes.
Parecemos não perceber que a recusa, a resistência ou o descaso ao planejamento nos obriga à ação caótica, a fazer “na doida”. É curioso que a universidade, tão crítica em relação à irracionalidade dos poderes do Estado brasileiro, exatamente pela ausência de um projeto planejado de intervenção social, repita internamente o que critica extra-muros. Na UERN, não temos, pra valer, plano de ação da unidade, não temos plano de ação do departamento. E encontra-se grande resistência quando tal é proposto. Como em tudo, há logicamente as exceções.

Quem planeja não teme avaliação. O nervosismo e, no limite, o boicote à avaliação na universidade é resultado dessa falta de planejamento.

Num certo sentido, a universidade (falo da UERN especificamente, mas creio também estar falando da universidade brasileira em geral) é uma instituição amadora. E o que é o amadorismo? É a ação justificada unicamente pelo prazer subjetivo que ela produz em quem age e não pelos resultados que a ação provoca. As instituições existem para responderem a necessidades. Essa resposta, resultado de um conjunto encadeado de ações, é algo racional, no sentido de que ela é detalhadamente arquitetada em razão de um objetivo. Qual o objetivo da universidade? Transmitir o conhecimento estabelecido, aquele que a tradição consagrou como conhecimento necessário à reprodução da cultura, e criar conhecimento novo, através da pesquisa. Para construir esse objetivo como resposta, a universidade precisa planejar e articular ações que produzam resultados. Entre um ponto e outro, funções são estabelecidas e responsabilidades, determinadas. Isso cria lugares que precisam ser pensados como articulados a um todo.

Fica claro, portanto, que um problema a ser enfrentado na UERN é a resistência ao planejamento e, em conseqüência, a resistência à avaliação. Essa resistência, é claro, não se manifesta de modo articulado, consciente, frente à frente, peito a peito. Ela se manifesta de modo difuso, através de engajamentos fracos, de não comparecimentos a reuniões, etc., quer dizer, ela se manifesta através daquilo que a gíria trata como “fazer corpo mole”. É estranho esse comportamento para quem, algum dia, já se confessou adepto da “filosofia da praxis”.

Poder Acadêmico na UERN


(Artigo publicado no Informativo UERN de março 2008, p. 12)

Aécio Cândido

Um livro publicado há um pouco maios de 20 anos pelo filósofo Arthur Giannotti, da USP, mantém uma atualidade preocupante. O livro se chama Universidade em ritmo de barbárie e trata das mazelas da universidade brasileira. Nesse livro, o autor expõe, didaticamente, o conceito de poder acadêmico e a constatação de que, na universidade brasileira, ele é o poder mais débil, esmagado pelo poder burocrático e pelo poder sindical, quando é em função dele que a universidade existe. O motivo de preocupação é que, passados 20 anos, persistem muitas das mazelas que impedem a constituição plena desse poder. No entanto, se ele enfrenta muitas resistências para se constituir, não quer dizer que seja um ausente completo em algumas universidades. Entre nós, na UERN, embora atacado em vários flancos, ele é um poder em franca constituição.

A expressão poder acadêmico pode ser entendida como o resultado de uma dinâmica acadêmica intensa, movimentada, rica - ou qualquer outro adjetivo que dê conta da existência singular de certas atividades, práticas e procedimentos e de seu vínculo especial com a missão da universidade. Essa dinâmica pode ser visualizada no número de conferências promovidas, de debates organizados, de títulos acadêmicos conferidos, de artigos e livros publicados, de bolsas de estudo concedidas, de projetos de pesquisa aprovados, etc.

Na UERN, a expressão poder acadêmico sempre me pareceu um tanto confundida com a própria dinâmica que o engendra. Quando, sobretudo no meio sindical, se fala em poder acadêmico, o que se pensa como correspondente é na profusão de atividades. Pouco se atenta, a meu ver, para o concreto dessa dinâmica, para as relações que ela engendra, para as hierarquias que ela tece e das quais se alimenta. E aí está o poder, um poder derivado do exercício radical da missão da universidade - a produção e a difusão de conhecimentos – e, nesse sentido, o mais legítimo entre os poderes da universidade, como assegura Giannoti. O poder acadêmico não é a dinâmica em si, mas é derivado dela. Como todo poder, ele se traduz em permissões e em interdições (quem pode e quem não pode avaliar uma dissertação, quem pode e quem não pode julgar a qualidade de um projeto de pesquisa, quem pode e quem não pode proferir uma palestra sobre um determinado tema, etc., e em razão disso quem pode se pronunciar sobre certos rumos da universidade).

Aspecto incômodo para algumas pessoas, ele é um poder de matriz meritocrática, isto é, em sua constituição o mérito individual se sobrepõe a qualquer outro determinante. Ao mesmo tempo, é um poder aberto; democrático porque acessível a todos aqueles que se disponham a cumprir com os seus ritos. Concretamente: há poderes que doutores têm que mestres não têm, há outros que apenas doutores com publicações em revistas de impacto nacional podem ter. O pior que pode acontecer neste terreno, e desviar a universidade de sua função social de produtora do conhecimento, é pretender introduzir no âmbito do poder acadêmico a noção de isonomia, porque ele é essencialmente assimétrico: pode mais quem produziu mais e logrou ser reconhecido pela comunidade de pares, ou seja, pode mais quem mais se muniu de capital científico; não pode nada, neste campo, quem não tem esse capital. A isonomia cabe bem na assembléia sindical – aliás, faz parte de sua própria natureza -, mas não cabe nos espaços do poder acadêmico. Mas para que não se alimentem algumas incompreensões: o poder acadêmico não se resume a uma questão de títulos; os títulos que não se traduzem em produção, em produção qualificada, perdem seu poder ou, mais que isto, nem chegam a tê-lo. Aqui não vale o ditado “quem tem fama dorme na cama”. O título, por si só, não dá fama a ninguém; a conquista do prestígio se dá pela produção.

Entre nós, nos últimos15 anos, esse poder foi sonhado, muita gente gastou o tempo lamentando a sua inexistência na UERN, outros desistiram da UERN porque esperaram encontrá-lo pronto, feito por não sei quem, sem compreender que tal poder é construído na aula bem dada, na avaliação bem feita, no programa bem articulado da disciplina, na monografia bem orientada, na pesquisa bem conduzida, na dissertação e na tese bem defendidas, etc. Nesses 15 anos, a UERN mudou, o quadro docente alterou-se profundamente, de modo que uma nova dinâmica acadêmica está em franco e adiantado processo de construção, e com a correspondente construção de um poder acadêmico. Evidências: mais de quarenta docentes da instituição, em razão de sua produção acadêmica e da qualidade dos seus projetos de pesquisa, têm o poder de conceder a estudantes da graduação bolsas de iniciação científica; quinze deles, pelas mesmas razões, gozam do direito a uma bolsa de produtividade em pesquisa e esta distinção os qualifica como consultores para certas demandas na área da pesquisa e da pós-graduação; dezesseis pesquisadores (8 da FANAT, 1 da FE, 2 da FASSO, 3 do campus de Natal, 2 do de Pau dos Ferros e 1 do de Caicó) tiveram aprovados, no final de 2007, seus projetos no Programa Primeiros Projetos do CNPq/Fapern, num total de 210 mil reais, e outros cinco (todos da FANAT) no Edital Universal do CNPq, conseguindo carrear para a instituição algo em torno de 90 mil reais. A aprovação de três mestrados (Física, Ciência da Computação e Letras) insere-se nessa nova dinâmica, onde contam menos as intenções e muito mais os gestos. A consolidação desses mestrados exigem, como condição, a expansão e o enraizamento institucional do poder acadêmico. É o que apontam as novas políticas de capacitação docente, a avaliação do estágio probatório e a regulamentação da avaliação de desempenho para progressão funcional. Mas é preciso mais.

É apenas a falta de dinheiro o que atrapalha a administração pública?


(Artigo publicado no Informativo UERN de janeiro-fevereiro de 2007, p. 12)

Aécio Cândido

“A invenção e a avaliação de um teorema ou de uma teoria da física pressupõem a
existência de um meio social propício que incentive a criação e permita a
avaliação. Do mesmo modo, uma teoria política ou uma inovação técnica ou
intelectual, para serem aceitas, pressupõem um terreno social favorável”.

Raymond Boudon (Tratado de Sociologia, p. 519)


No ano 2000 eu trouxe à UERN, como já trouxera outras vezes e como continuei a trazer em anos seguintes, o professor Alípio de Sousa Filho, sociólogo da UFRN, para falar para meus alunos de Ciências Sociais. Naquele ano, Alípio havia lançado um pequeno livro que tratava da universidade de forma bastante diferente de como o tema costumava ser tratado nas assembléias sindicais e nas reuniões dos departamentos. O livro se chamava Responsabilidade intelectual e ensino universitário, e, fundamentalmente, analisava comportamentos de professores em sala de aula. De princípio, o que me chamou a atenção para o livro, afora a amizade que me liga ao autor, foi esse foco sobre o indivíduo. A tradição marxista consumida na universidade brasileira a partir dos anos 1960 sepultou como reacionárias e anti-científicas quaisquer análises que tomassem o indivíduo como referência. Esta visão de mundo, no interior da universidade, e no serviço público brasileiro em geral, chega ao paroxismo de referir-se à universidade como eles (o governo, o Estado, a classe dominante, o Imperialismo, etc.), mimetizando-se e não se enxergando, em absoluto, como uma variável do problema.

A palestra do professor Alípio causou um certo mal-estar entre os alunos, grande parte deles militantes, via movimento estudantil, de partidos messiânicos. Era a época FHC, e o neoliberalismo do presidente era responsabilizado por tudo: pela má qualidade das aulas, pelo pouco aprendizado dos estudantes e pelo chamado sucateamento das universidades. Eu provocava os alunos, e certamente desencadeava antipatias sinceras, ao dizer que FHC não era tão poderoso a ponto de me impedir de ser um “bom” professor, de dar “boas” aulas. Havia coisas em minha profissão que dependiam do Estado, obviamente, mas a minha paixão por ensinar, o meu compromisso em dar o conteúdo programado, em explicar os textos da melhor forma que me era possível, a honestidade intelectual em confrontar, respeitosamente, teorias sociais díspares, etc. não dependiam do Estado. E, vivendo num Estado de Direito, não via comprometida a minha liberdade. Eu tinha liberdade absoluta, para defender qualquer ponto de vista em sala de aula, porque não havia olhos do Estado a me vigiar. Eu tinha mesmo liberdade demais: eu nunca tinha passado por uma avaliação, o diretor da minha faculdade não me cobrava nada, nunca tinha procurado saber se eu chegava na hora, se eu chegava com aulas preparadas ou se as improvisava, nunca me questionara sobre o programa adotado nas minhas disciplinas, etc. Os alunos, em geral, não aceitavam facilmente este discurso. Eles “gostavam” do discurso que colocava todo o poder de produção do social nas mãos do Estado e que apresentava o indivíduo como submisso, simples joguete de forças sociais poderosas e incontroláveis, vítimas passivas, impotentes ou inconscientemente conformadas. Ao mostrar fatos que contrariavam essa crença, eu pretendia que eles se tornassem melhores sociólogos, isto é, que, a partir da consideração dos fatos, de sua observação, comparação, quantificação e representatividade, desconfiassem das explicações excessivamente genéricas, enfim, que se sentissem sem amarras para pensar ou, em outras palavras, se sentissem livres para permanentemente confrontar teorias com fatos. Porque nós todos somos facilmente prisioneiros de nossas crenças. Precisamos a todo momento, a fim de melhor caminharmos no mundo, dessa confrontação. Este é o meio mais seguro para não cegarmos de vez. Esta postura vigilante serve para as crenças científicas, para as crenças políticas, para as crenças estéticas. Serve para balizar todo aquele conhecimento que, em maior ou menor escala, reivindica algum grau de objetividade e de racionalidade.

Mas essa divagação longa tem alguma coisa a ver com o título do artigo? Tem, sim. Responder afirmativamente ao título significa colocar nas mãos do Estado, financiador maior da universidade, a responsabilidade exclusiva pelos problemas da instituição. Se o problema é dinheiro, se com ele tudo se resolve magicamente, basta reivindicar do Estado o aumento de verbas, pressioná-lo através das greves anuais e tudo estará resolvido. Se a universidade fosse apenas prédios e equipamentos, o raciocínio estaria corretíssimo e tudo seria bem mais fácil. Mas não é. Universidade é transmissão e produção do saber. Neste caso, infra-estrutura é apenas um dos elementos da equação e não a equação inteira.

Há alguns meses, durante uma reunião do seu Fórum, pedi aos diretores presentes para participarem de um exercício simples. Pedi-lhes que me respondessem a duas perguntas. Uma delas era a seguinte: Identifique um problema na UERN que possa ser resolvido sem dinheiro (ou com muito pouco). Houve quem achasse que a pergunta não tinha sentido, já que a resolução de qualquer problema institucional pressupõe dinheiro, em geral muito dinheiro. Mas houve quem se dispusesse a pensar e a fazer tal identificação. Problemas de relacionamento entre servidores, de desconhecimento das atribuições do cargo, de cumprimento da jornada de trabalho, de composição dos Conselhos Superiores, de racionalidade nos gastos, de adoção do expediente corrido, etc. foram apontados como problemas sérios e passíveis de serem resolvidos apenas com “golpes” de gestão. Trata-se de vigiar as cláusulas do contrato e de tornar o conjunto da instituição mais ágil em razão do melhor funcionamento das partes. Isto significa cada um conhecer melhor sua função e melhor desempenhá-la.

O orçamento da universidade se compõe de três itens: pessoal, custeio e investimento. Sejamos justos: o Estado tem cumprido religiosamente a parte referente a pessoal. Há pelo menos 15 anos não temos salários atrasados e desde um bom tempo conhecemos com a antecedência de um ano o calendário de pagamento, o que, admitamos, é uma proeza significativa de planejamento financeiro. Ora, podemos reclamar de tudo, menos de que o Estado não está cumprindo com a parte do contrato naquilo que diretamente nos diz respeito. Se o serviço está pago, por que não fazê-lo bem? Há nesse trabalho prestado uma boa parte que depende, para ser bem prestado, da disponibilidade de uma certa infra-estrutura (o que se pode chamar de condições de trabalho), mas há outra boa parte que não depende. Depende de algo meio difuso, o compromisso, situado na esfera do contratado, e depende também de avaliação, algo institucional, situado na esfera do contratante. Eis aí os alvos a serem atacados: compromisso, pelo lado do indivíduo, e avaliação, como exigência do cumprimento do compromisso, pelo lado da instituição. Se falta de compromisso se soma a infra-estrutura deficitária aí tudo se complica. Ainda mais.

A noção de contrato social entre nós


(Artigo publicado no Informativo UERN, em março de 2001, p. 10)

Aécio Cândido

O século XVII foi, em certa medida, o século de ouro da ciência política. A idéia de contrato social nasceu com ele e esse mesmo século abrigou os maiores pioneiros nesse campo: o alemão Johannes Althusius e os ingleses Hobbes e Locke.

A noção de contrato social é uma dessas idéias fortes que se produz de tempos em tempos e cuja fecundidade revela-se na capacidade de alterar o ritmo da convivência humana. Trata-se de uma idéia que, resistindo ao tempo, tem ganho a maturidade de novos sentidos e precisões.

No entanto, apesar de seus mais de 300 anos, essa noção ainda não se incorporou à cultura brasileira. Formalizada em lei, como a lei do trânsito, por exemplo, ou num simples acordo cotidiano, como o horário de um encontro, o fato é temos enormes dificuldades de cumprir aquilo que foi acordado. Nem cumprimos na esfera privada nem na esfera pública. Os estatutos e regimentos de nossas instituições são em geral peças de ficção, feitos apenas para cumprir o ritual da legalidade. O que é um paradoxo, porque o contrato pressupõe a participação consciente das partes, a concordância racional e racionalizada com os termos do acordo. E ficção se opõe à realidade. Mas entre nós a realidade não goza de muito prestígio. Como herdeiros de uma “cultura de rábulas”, portuguesa, preferimos a retórica, isto é, a realidade dourada em ficção, à palavra simples tradutora do real. Por isso concordamos e aplaudimos tanto o que não compreendemos.

Este é um lado da questão. O outro é que, mesmo compreendendo, não costumamos levar a sério o combinado. A expressão “Papel agüenta tudo” serve como testemunha do descaso com que tratamos os acordos. Daí não ser raro que o estatuto de uma associação, documento fundante da entidade, seja copiado de outra, o que demonstra que pra nós tanto faz, uma vez que o que ali está afirmado não é de fato a expressão de nossa vontade. Seja porque, em algumas situações, não se compreende mesmo os termos do contrato, seja porque, em outras, a noção de contrato parece estranha. Como se vê, falta ao contrato a sua própria essência: a racionalidade que fundamenta a liberdade para concordar ou discordar. Desse modo, em ambas as situações a tolerância ao desvio da norma é a regra. Em ambos os casos o que se constata é a negação do contrato.

O contrato pressupõe a vontade livre das partes entrarem em acordo e a compreensão do que está sendo negociado. A adesão, por fim, é o reconhecimento de vantagens para todas as partes. O acordo é um exercício da razão.

Como a universidade é um campo de domínio da razão, deveríamos esperar que aí fosse fácil o reconhecimento da utilidade dos contratos e a compreensão, em toda sua extensão, do significado dos termos em que eles estão firmados. Puro engano. Na UERN estamos imersos na mesma cultura não-contratualista que é uma marca do país. Temos, cada departamento e faculdade, um regimento interno, onde estão firmadas as normas de conduta, as competências de cada membro, etc., mas em geral esse regimento não serve em quase nada para guiar as ações de ninguém. E tanto não serve que o contrato é desrespeitado nas suas bases mais elementares e nenhuma reação é esboçada. Exemplos: 1) espera-se de um professor com contrato de 40 horas que trabalhe na instituição... 40 horas, mas não é isso o que ocorre sempre; 2) as aulas à noite têm a duração de 45 minutos, mas há uma tolerância exagerada a quem chega na metade e sai antes do fim, seja aluno ou professor; 3) as aulas devem começar às 19 horas e se encerrarem às 22:10, mas poucos, alunos e professores, são os que ultrapassam as 22:00 horas; 4) um professor convocado por seu chefe ou por seu diretor para uma reunião a ela deveria comparecer, uma vez que o tempo da reunião está contabilizado nas 40 horas do contrato de trabalho, mas as reuniões de muitos departamentos e faculdades vez por outra não se realizam por falta de quorum; 5) o expediente pela manhã deve começar às 7 horas, mas grande parte dos funcionários só começa a chegar às 7:30 h.

Todos os exemplos dados dizem respeito ao elementar, ao básico do contrato. O regimento interno, isto é, a letra do contrato, na medida em que prescreve as ações esperadas de cada um, determina também as sanções para quem não as realiza. Mas estas não são usadas. Uma das razões que explicam a omissão da autoridade, legitimamente constituída no contrato, é que, escudados numa noção confusa de democracia, já não fazemos diferença entre arbitrariedade e respeito à letra do contrato.

Fazemos discursos, na academia, contra a impunidade na sociedade brasileira, mas entre nós fica impune o professor que não vai a nenhuma reunião do departamento, o que começa a aula atrasado e sai antes da hora, o que dá menos da metade do conteúdo previsto, o funcionário que não chega na hora, o aluno que não assiste aula. Se nós, nas esferas que nos competem, não cumprimos com as responsabilidades que nos cabem, como podemos cobrar responsabilidades de quem orbita em outros espaços?

Biografia

Um poema de Olavo Bilac, desses hoje completamente fora de moda, me entrou na cabeça aí pelos 11 ou 12 anos. Chama-se Modéstia: “Se a todos os condiscípulos/ Te julgas superior,/ Esconde o mérito, e cala-te/ Sem ostentar teu valor./ Valem mais que a inteligência,/ A constância e a aplicação:/ Sê modesto! estuda, aplica-te,/ E foge da ostentação!/ Mais vale o mérito próprio/ Sentir, guardar e ocultar:/ Porque o verdadeiro mérito/ Não gosta de se mostrar”. Às quadrinhas de Bilac, pela mesma época ou talvez um pouco antes, veio se juntar uma passagem do Evangelho martelada por minha mãe: “Quando alguém te convidar para uma festa, não te coloques no primeiro lugar, para que não aconteça que alguém mais digno do que tu tenha sido convidado, e o dono da casa venha a te dizer: 'Cede teu lugar a ele'. E aí deverás, todo envergonhado, ocupar o último lugar. Pelo contrário, quando fores convidado, ocupa o último lugar, porque pode ser que o dono da casa te diga: 'Amigo, venha para mais perto'. E isso será uma honra para ti na presença de todos”.
Convencido desde cedo de que a humildade é uma virtude a ser cultivada, não lembro de ter praticado o auto-elogio em nenhum momento da vida. No entanto, um blog como este é um exercício de imodéstia. Nele pretendo mostrar aos meus pares o que tenho feito nos últimos seis ou oito anos. Sou forçado a fazê-lo. Menos para me vangloriar e mais para me defender dos muitos ataques que tenho sofrido neste início de campanha eleitoral.
Tenho 52 anos. Destes, dediquei 15 à arte e à política e 22 à UERN. Na arte fiz teatro amador - interpretação e direção -, ensaiei crítica literária numa coluna semanal da Gazeta do Oeste, logo quando o jornal nasceu, e agitação cultural. Na política, militei no PT e fui educador popular, ministrando cursos de educação política e de educação sindical para agricultores da região.
Na UERN fui professor de Antropologia e de algumas áreas da Sociologia, tutor do Programa de Educação Tutorial – PET -, orientador do PIBIC, professor do Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente. Já orientei 7 dissertações de mestrado, mais de uma dezena de monografias de especialização e o mesmo tanto de monografias de graduação.
Tenho tentado conciliar a pesquisa com o ensino e a administração. Não é fácil. A pesquisa finda perdendo. De todo modo, graças ao empenho dos colegas, nosso grupo de pesquisa não tem sido dos mais improdutivos. Temos realizado anualmente pelo menos uma pesquisa de campo conjunta, afora as pesquisas individuais, escrito artigos, conjunta e individualmente, e promovido eventos de estudo e de divulgação. Recentemente, em outubro 2008, trouxemos para Mossoró o III Encontro SOBER Regional Nordeste, que reuniu quase 100 pesquisadores da área de desenvolvimento rural, talvez a primeira reunião na UERN de uma sociedade científica nacional.
Na administração fui diretor do Centro Cultural, onde criei projetos de divulgação artística como o Outras Falas, ainda existente, e o Curto-Circuito, e onde varri muito palco e carreguei muita cadeira, para que o brilho dos espetáculos não fosse nublado pelas imperfeições do serviço público. Fui assessor internacional, pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação. Hoje sou vice-reitor e candidato à reeleição, junto com o prof. Milton Marques.
Tenho feito anualmente não menos de 10 palestras, dentro e fora da universidade, sobre educação e desenvolvimento e a relação destes com a cultura política, e participado de 2 a 3 bancas de mestrado e doutorado. Creio que tenho vivido na universidade suas três dimensões: o ensino, a pesquisa e a extensão.
Gosto da minha formação intelectual. Fiz ginásio agrícola, técnico agrícola e agronomia. Depois descobri a Sociologia. Aí fiz mestrado em Sociologia Rural e doutorado em Sociologia, com tese em Sociologia do Desenvolvimento. Gosto desse tipo de mistura, a que hoje dão o nome de interdisciplinaridade. Estudante de agronomia, fui professor de Botânica no Ensino Médio (ainda sou capaz de identificar grande parte das famílias de plantas da região de Mossoró e mesmo alguns gêneros), de Ciências no Ensino Fundamental e, como autodidata, de Redação e Literatura Brasileira em cursinhos pré-vestibular. Tornei-me um leitor voraz e feliz aos nove anos, graças ao padre da minha terra, José Rodrigues, que me apresentou a uma biblioteca infantil recheada de Vinte Mil Léguas Submarinas, de A Ilha do Tesouro, de Moby Dick, de Robson Crusoé e de histórias em quadrinhos que tratavam dos heróis gregos e da história da Grécia. Li toda a biblioteca, uns 30 ou 40 livros.. Logo em seguida descobri os contos de As Mil e Uma Noites na biblioteca municipal e uma História Sagrada, versão resumida do Antigo Testamento, que minha mãe guardava com certa reverência, e minha felicidade ganhou mais corpo.
Vivi experiências existenciais e intelectuais singulares. Morei alguns anos na Serra do Mel, projeto de colonização agrária dos maiores do Brasil, experimentando uma vida comunitária que reunia 33 pessoas comendo numa mesma cozinha e trabalhando coletivamente. Lá fui agricultor, professor primário de classes multisseriadas (3a. e 4a. Séries), coordenador pedagógico de um projeto especial de educação, diretamente ligado ao gabinete do secretário de Educação, no qual todo o material didático era produzido por nós.
Publiquei dois livros de poesia, um de contos e uma peça de teatro, esta em parceria com o poeta popular Crispiniano Neto. A administração universitária me afastou da criação literária. A literatura não perdeu grande coisa, certamente.
Criei e dirigi jornais estudantis em Currais Novos, Jundiaí e na ESAM (UFERSA, hoje). Fui presidente de centro acadêmico.
Parece uma vida intelectualmente errática? Não creio. O que me move é a curiosidade, o prazer da criação, do aprendizado e o êxtase com a beleza. Os campos da Arte, da Ciência são campos da criatividade. O da gestão também, embora alguns o desprezem, entendendo-o como refúgio de frustrados. É profundamente injusta – e errada – esta visão. A gestão, no setor privado ou no público, é uma área de intensa criatividade, de enfrentamento de desafios e de resolução de problemas.