quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Medonho

João Marcelo, um mês depois de completar 4 anos, amuado:
- Pai, minha mãe disse que eu sou medonho.
- Meu filho, você mexe muito nas coisas, você não obedece quando a gente fala... Você é medonho, sim.
Ainda mais amuado:
- Eu não sou medonho não! Eu sou um cara legal.

Um texto de Peter Berger

Leio um texto de Peter Berger, de 1992, publicado no Brasil dois anos depois, na revista Diálogo (nº 1, vol. 27). O texto se chama Sociologia: um desconvite? Professor na Universidade de Boston, Berger escrevera em 1963 um livro chamado Convite À Sociologia, traduzido no Brasil como Perspectivas sociológicas. Ele produziu muitos estudos interessantes, alguns deles definitivos (se não for temerário falar em estudo definitivo quando se fala em ciências sociais) e bem conhecidos, como é o caso de A construção social da realidade.
O texto de Berger analisa, de certo modo, a trajetória da sociologia, nas décadas posteriores a 1960, seus percalços e resultados. Sua visão é meio melancólica, suas conclusões são um tanto sombrias. Ele insiste, como tantos outros, em tratar do método. Mas é do método, de fato, que se trata. Este é um problema central em qualquer ciência, e de modo muitíssimo particular nas ciências sociais. O que ocorre é que o problema do método está completamente resolvido nas ciências da natureza: observar, contar, estabelecer conexões com a teoria e generalizações são mais ou menos estes os passos estabelecidos, submetidos à regra geral da objetividade. Qualquer jovem pesquisador em biologia ou física é capaz de distinguir com precisão se um texto de sua área é científico ou não. Nas ciências sociais há gente que advoga a supremacia do subjetivo na observação e, em consequência, na interpretação do observado, que recusa qualquer quantificação e que estabelece generalizações a partir de fatos muito pouco representativos. Em síntese, como observar o fato social é ainda uma questão em permanente formulação. E isto provoca consequências muito sérias para os resultados da contribuição do sociólogo ao conhecimento. Há, com toda evidência, na metodologia adotada pela maioria dos sociólogos, uma ruptura com o programa anunciado na obra de Durkheim e de Weber, o de uma sociologia compreensiva, fruto do esforço do estabelecimento de postulados claros e escorada em fatos. A nostalgia de Berger reflete a constatação desse distanciamento. Lembra um pouco o esforço quase solitário de Boudon em ressaltar nos clássicos esse rigor metodológico, sem o qual a sociologia permanecerá à deriva.

As duas culturas, de C. P. Snow

Recuperei o livro As duas culturas, de Snow. Li-o há uns seis anos, emprestado de uma amiga professora de Serviço Social. Julgava tê-lo devolvido. Reencontrei-o na semana passada, no fundo de uma estante. Com a existência hoje da Estante Virtual, encomendei dois exemplares (um para Carlos Ruiz), e já os recebi, cinco dias depois de concluir o pedido. É um livro pequeno, mas essencial, célebre, fruto de uma conferência proferida na Universidade de Cambridge (Inglaterra) em 1959. Snow trata, numa linguagem claríssima, de raciocínios retos e argumentação simples, da distância de percepções e de conhecimentos existente entre pesquisadores das áreas científicas e estudiosos das letras e da cultura. É leitura fundamental, para quem tem visto esse fosso se alargar sempre mais e mais, sobretudo pra nós, no Brasil e na UERN, que estamos no curso da construção da universidade como instituição especializada na produção de conhecimentos. Isto aqui não é uma resenha, é apenas uma nota para chamar a atenção de quem não conhece o livro. Muitas observações do autor, muitos aspectos de sua análise poderiam ser destacados. Não é o caso, aqui. O destaque que faço é para o fato de que a natureza humana é a mesma em qualquer latitude e em qualquer época. O que leva o debate acadêmico para direções que muitas vezes o negam. Veja-se o que diz Snow a respeito desse debate:
“Entre os comentários que se teceram até o presente, houve uma manifestação incomum que quero mencionar somente para tirá-la do caminho. Uma parcela pequena, muito pequena mesmo, das críticas veio carregada de injúrias pessoais em níveis anormais; na verdade, eram tantas num caso que as pessoas responsáveis por sua publicação em dois meios diferentes de comunicação me procuraram pessoalmente com o intuito de obter o meu consentimento. Tive de lhes assegurar que não pretendia propor uma ação legal. Tudo isso me pareceu bastante estranho. Em qualquer debate o normal é que surjam palavras duras, mas não é comum, pelo menos segundo a minha experiência, que elas beirem o limite da difamação.
No entanto, o problema de como comportar-se nessas circunstâncias é facilmente resolvido. Vamos supor que eu seja chamado, publicamente, de cleptomaníaco necrófilo (selecionei cuidadosamente duas alegações que, pelo que sei, não foram feitas). Tenho exatamente duas alternativas. A primeira, que em geral é a que prefiro escolher, é não fazer nada. A segunda é, se o aborrecimento se mostrar intolerável, processar o difamador. Existe uma alternativa que ninguém pode esperar de um homem são: isto é, discutir solenemente os argumentos, arranjar certificados de Saks e Harrods dizendo que ele nunca, de acordo com seu melhor julgamento, roubou um único objeto, obter atestados assinados por dezesseis membros da Royal Society, pelo chefe do Serviço Público, por um juiz do Tribunal de Apelação e pelo secretário do. MCC, afirmando que eles o conhecem quase a vida inteira e que nem mesmo depois de uma noitada o viram, sequer uma vez, espreitando as cercanias de um túmulo.
Não se espera uma resposta desse tipo. Ela nos rebaixaria ao mesmo nível psicológico do detrator. Temos o direito de evitar semelhante situação. Felizmente, o debate não será prejudicado se ignorarmos críticas desse teor, ou alguém associado a elas. Pois contribuições intelectuais que elas contêm outros já as fizeram, com educação e seriedade”.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

João Marcelo e suas razões inventadas

Diálogo com João Marcelo, a um mês de completar 5 anos:
- Vá tomar banho!
Solto a ordem alguns momentos depois do almoço e do retorno da escola, quando seu corre-corre pela sala e o sobe-desce pelos móveis e escada já lhe produziram suor suficiente para justificar uma ida ao chuveiro.
- Não vou!, é a resposta seca.
- Por que você não vai? Me dê uma boa razão – insisto, tentando fazer-lhe enxergar a evidência e incentivando-o a desenvolver razões lógicas.
- Não vou tomar banho que hoje não é dia de brincadeira.
Os termos da relação são francamente sem lógica. A lógica talvez esteja em oferecer uma razão quando ela é esperada, em adequar-se a uma expectativa, sem, no entanto, saber como expressá-la.
De todo modo, a frase, pelo inusitado, me faz lembrar uma observação profundamente inteligente do matemático americano John Allan Paulos: “Não há elo causal entre ‘Deus existe’ e ‘é proibido comer batatinha frita nas sextas-feiras’”.
Será que meu filho vai ser pastor?

Agostinho e a leitura, segundo Bloom

Veja o que aprendi hoje, às 4:30 h da manhã, lendo Harold Bloom, na tentativa de apaziguar a insônia - graças a Deus, rara; às vezes, bendita:

“Além da extensa contribuição à teologia, Agostinho inventou a leitura, conforme a conhecemos há 16 séculos. Não sou o único a assistir, com tristeza, à agonia da leitura, em uma era que celebra Stephen King e J. K. Rowling, em vez de Charles Dickens e Lewis Carrol. Agostinho foi, basicamente, o primeiro teórico e defensor da leitura, embora, sendo um intérprete ético, tivesse repudiado um ponto de vista como o meu, que busca a sabedoria secular somada à experiência estritamente estética, ao mesmo tempo, livremente hedonista e fortemente cognitiva (…) Com Agostinho aprendemos a ler, pois foi ele o primeiro a estabelecer a relação entre leitura e memória, ainda que, para ele, o propósito da leitura fosse a conversão ao Cristo. (…) Pensamos porque aprendemos a memorizar nossas melhores leituras – na caso de Agostinho, a Bíblia e Virgílio, Cícero e os neoplatonistas, aos quais acrescentamos Platão, Dante, Cervantes e Shakespeare, com Joyce e Proust no século que apenas acabou. Mas somos sempre a prole de Agostinho, que primeiro nos disse que somente o livro é capaz de alimentar o pensamento e a memória, bem como a sua complexa interação. A leitura, por si só, não nos salvará, nem nos tornará sábios; porém, sem a leitura, cairemos na ignorância agonizante...”