A encenação de 2010 do Chuva de Bala no País de Mossoró recupera a beleza plástica e o ritmo cênico perdidos em 2008
O sucesso das receitas de sucesso, ensinam os grandes chefes de cozinha, está na qualidade dos ingredientes. A lição é óbvia, e o povo a repete, com precisa concisão, na sentença anônima: “Com má farinha não se faz bom pão”. Esquecer esta recomendação simples é um passo para o desastre. Foi o que aconteceu com o espetáculo Chuva de Bala no País de Mossoró, em 2008, quando foi entregue à direção de Eliézer Rolim. Eliézer é um diretor competente, tem no seu currículo espetáculos criativos e ousados, mas, não se sabe por quê, ignorou o que todos sabem, e quis produzir um milagre impossível: um bom prato sem ingredientes confiáveis. Sem música criativa, sem coreografia marcante e, sobretudo, sem atores versáteis e experientes não existe musical grandioso. Sem a música de Danilo Guanais o Chuva de Bala... perde seu tom épico, sua dramaticidade envolvente. Claro que o espetáculo pode ter outra música, como pode também ter outra direção e outros atores. Contanto que cada um desses elementos isoladamente, e o conjunto como um todo, supere o que o público já viu. Pois o que o público já viu, regido pelo talento de João Marcelino, responsável pela direção, é um espetáculo redondo, ágil, preciso no ritmo, e profundamente emocionante.
João Marcelino não tem deixado o espetáculo envelhecer. A marca de sua encenação, presente desde a primeira montagem, é a contínua ousadia, o acréscimo de novos elementos cênicos, a re-elaboração criativa de cenas já experimentadas, o trabalho incansável com atores e bailarinos. A história, claro, é a mesma, com os mesmos personagens, o que muda é a forma de contá-la.
O sucesso do espetáculo deve-se à combinação harmoniosa entre seus vários elementos: texto, música, coreografia e interpretação dos atores. Pode-se acrescentar também o figurino, a iluminação e a maquiagem. Trata-se de um musical, e cada vez mais é como tal que ele se assume, o que implica em exigências redobradas para os atores, que precisam desenvolver dotes de cantores e de bailarinos. Mossoró está formando, nos grupos de teatro e nas academias de dança, algo incomum no Brasil: o ator múltiplo, que canta, dança e representa. Esta formação é comum nos Estados Unidos, não no Brasil.
Há harmonia entre os elementos cênicos e há homogeneidade na atuação dos artistas. O conjunto de atores, cantores e bailarinos, de protagonistas, coadjuvantes e figurantes é afinado e homogêneo. Ninguém brilha em demasia a ponto de ofuscar o outro e desequilibrar o espetáculo, de submetê-lo à sua atuação. Há destaques, evidentemente, mas sem se descolar do conjunto. Impressiona o Lampião criado por Dionísio do Apodi – interpretação marcante, calcada numa caracterização primorosa do personagem, o que inclui a dicção escandida que acentua a presença cênica do cangaceiro. É um ator meticuloso, maduro, em pleno domínio das ferramentas do seu ofício. Em contraponto, também impressiona a interpretação de Marcos Leonardo para o prefeito Rodolfo Fernandes - talvez mais despida de detalhes, mas nem por isso menos atraente. Em torno deles, um exército de coadjuvantes aplicados que dão precisão e leveza ao espetáculo. Jayson Leonardo, Plínio Sá, Renilson Fonseca, Cícero Lima dão conta de seus personagens com irrepreensível competência. Porém, o destaque maior, pela promessa que encerra, é para o jovem ator Madson Ney, que interpreta o motorista Gatinho. Trata-se de um personagem que diz o que tem a dizer em suas falas, mas que diz também muito na sua participação muda na cena. Madson lhe dá uma interpretação exata. Gatinho já teve interpretações caricatas e pouco agradáveis.
Mas o grande achado da montagem 2010 é a concepção dos personagens Tonha, Totonha e Toinha, narradoras da trama, encarnadas agora como coristas alegres e desajeitadas de um vaudeville mambembe. Três atores as interpretam: Leonardo Wagner, Júnior Félix e Paulo André. O resultado é hilário, sem nenhuma sombra de caricato, e a empatia com o público é imediata. Todos se revelam bons atores e cantores e até arriscam uma coreografia minimalista que se ajusta à medida aos personagens. O trabalho de Júnior Félix e o de Leonardo é o esperado: são atores experientes, já cantaram outras vezes em cena e têm molejo e versatilidade para personagens femininos. Aí a surpresa agradável é Paulo André: trabalho convincente e maduro. A atuação de Paulo André é a sua reconciliação com o Chuva de Bala..., depois de ter sido levado, na montagem de Eliézer, a encarnar um Rodolfo Fernandes aguado e claudicante numa encenação à deriva. O que se vê agora é um ator que responde à altura a partitura do diretor.
O espetáculo, montado para a cena aberta ao ar livre, tem um apelo visual arrebatador. Mas nele o texto é fundamental, já que celebra um episódio da história da cidade que se pretende repassar às futuras gerações. No geral, o casamento entre o texto, a música e a coreografia se dá muitíssimo bem. A música de Danilo Guanais não apenas sublinha a intensidade do drama; ela narra, ela faz avançar o enredo, ela conduz o espectador na compreensão emocionada da narração. No entanto, na cena das viúvas e beatas há um descolamento, por razões puramente técnicas – a mixagem pôs em evidência o acompanhamento instrumental e escondeu a voz das viúvas e carpideiras. A cena é de uma beleza plástica avassaladora: um pano imenso, cobrindo todo o palco, cria a metáfora de um mar agitado pela agonia dos desesperados. Nele, mas em planos diferentes, surge um Lampião reflexivo rodeado por cabeças que emergem, por braços que se agitam na direção dos céus. A composição lembra uma Guernica mais dramática porque em movimento. Lamentavelmente, a compreensão das falas é prejudicada, quando a montagem da cena é uma ilustração do texto. Mas este é apenas um pequeno detalhe numa caminhada sem tropeços.
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