domingo, 15 de fevereiro de 2009

A beleza made in Mossoró

(Artigo publicado na Gazeta do Oeste em 12 de dezembro de 2003, Caderno Mossoró, p. 2)


Aécio Cândido
Tenho um amigo em Açu, músico, que ainda não viu o Oratório de Santa Luzia. Açu é bem ali, a 70 quilômetros, o Oratório está sendo apresentado pelo terceiro ano consecutivo, e eu considero esse desconhecimento, num homem sensível, um pecado grave. Descubro ao longo da semana universitários mossoroenses mergulhados na mesma escuridão. Acho um crime. Disse a meu amigo que, na hipótese de uma falta total de transportes entre Açu e Mossoró, valeria a pena vir a pé. A beleza do espetáculo paga, e com sobras, o sacrifício das doze horas de caminhada. Não acho que exagero. Não se trata de um espetáculo qualquer. O Oratório é o espetáculo mais bem acabado a que a cidade já assistiu. Não é pouco. Mossoró é uma cidade de tradição teatral. A história local registra a atuação de grupos nos anos 60 com montagens de clássicos do teatro ocidental (Édipo Rei, por exemplo) e do teatro brasileiro (Eles não usam black-tie, de Guarnieri, e Dona Xepa, de Pedro Bloch). Os anos 70 retiraram o teatro de cena para dar lugar à militância política, em grande parte inspirada nele. Os anos 80 foram de teatro político, mambembe e militante (Grupo Terra, se me permitem uma auto-citação). Os anos 90 foram de agitação teatral, de ocupação de espaços físicos (o Cine Caiçara) e estéticos (Grupo Nocaute à Primeira Vista). O novo século se iniciou com um ciclo diferente, o dos grandes espetáculos ao ar livre, assinados por um encenador nacionalmente reconhecido (Auto da Liberdade, Chuva de Balas no País de Mossoró, Oratório de Santa Luzia). Em toda esta história, o Oratório é o espetáculo de maior harmonia, equilíbrio e graça. É também o de maior inspiração.

O Oratório reúne, talvez mais por acaso do que por determinação, talentos muito especiais, e o que resulta daí é um grande espetáculo. O encontro de João Marcelino, diretor, com Danilo Guanais, autor da música, Marcos Leonardo, criador do figurino e adereços, Tony Silva, a grande artífice da emoção, e Clézia Barreto, coreógrafa, não é algo que possa acontecer todo dia em qualquer esquina. Encontros desta natureza só de décadas em décadas. Temos aí um conjunto de talentos, de criadores luminosos, que o Rio Grande do Norte, no seu encabulamento de província, ainda não soube apreciar e reverenciar com toda a intensidade que eles merecem. A música de Danilo Guanais é majestosa. No Oratório, ela é responsável por muito da dramaticidade e da emoção do espetáculo. João Marcelino é o encenador cerebral e emotivo, nordestiníssimo e universal. Sua concepção de espaço, de volume, de cor, de movimento, de intensidade emocional produzem um espetáculo que embebeda os sentidos. Quem vê a suntuosidade das roupas e dos adereços não pode imaginar que ali estão canudinhos de plástico, palitos de churrasco, pegadores de roupa, abridores de lata de refrigerante e buchas de louça esculpindo o luxo e a miséria de uma época. É o louvor de Marcos Leonardo à criatividade. Tony Silva vive hoje uma fase luminosa e a maturidade artística construída ao longo de duas décadas de interpretação contínua a coloca ao lado das maiores atrizes do teatro brasileiro. Clézia veste o espetáculo de leveza.

Espetáculos como o Oratório - pela grandiosidade, pelo número de artistas que envolve, pelos objetivos que possui - correm o risco de produzirem uma encenação desigual, sem harmonia, com um ou dois atores brilhando em cima da figuração de gente excessivamente amadora e sem maior expressividade em cena. Não é o caso, absolutamente. O Oratório, em sua terceira versão, é um espetáculo homogêneo, limpo, ágil, afinado, sem desníveis de interpretação. A presença de Tony Silva, num de seus maiores papéis, o da cega Nicácia, tem o brilho fortíssimo de sua marca interpretativa, mas não compromete em nada a interpretação dos outros. O destaque de uma ou outra interpretação fica por conta dos detalhes e dos grandes achados de composição dos personagens, como é o caso da mão nervosa da cega Nicácia, que se abre e fecha freneticamente, lembrando algumas cegas de nossa infância nordestina, ou a voz de baixo de Nonato Silva, sem agudos de qualquer espécie, para compor um bispo que é autoridade mas que também é ternura. Esse equilíbrio é talvez a marca mais admirável do espetáculo.

Mas tem mais. João Marcelino é o mais teatral dos diretores desse novo ciclo. A função do teatro é contar, limitado pelo espaço do palco, uma história para o espectador. Mais do que contar, fazer viver. Para simplesmente contar uma história existe o romance, o conto, a novela. O teatro faz personagens viverem uma história, transitando em vários lugares, expressando variadas emoções misturadas em diversos tempos. Se o cinema mostra, o teatro sugere. Sugere a passagem do tempo, sugere os espaços por onde o personagem se movimenta. E sugestão é transmutação de uma coisa em outra. Daí porque no Oratório, o cavalo é a simulação de um cavalo, com as componentes que o imaginário medieval produziu de um cavalo endemoinhado que serviu ao martírio de uma virgem - botando fumaça pelas ventas e fogo pelos olhos. Esta é a representação verossímil de um imaginário fantástico. Mas isto não é tudo: o cavalo é feito de ferro, com dois tambores de metal como corpo, seguindo um desenho esquemático infantil. O cavalo é, enfim, uma solução teatral. E de soluções genialmente teatrais está cheio o trabalho de João Marcelino. Porque o diretor precisa criar soluções para se sair do impasse que lhe impõe o espaço cênico. Ele só tem um, e esse um precisa ser todos. Ou seja, o trabalho do diretor é tornar inteligível num só espaço todos os outros espaços por onde a história circula.

E como teatro não é só o que ocorre no palco, impressiona que Mossoró reúna uma equipe de produção, Jocelito Barbosa à frente, tão precisa no seu trabalho. Reconheça-se também à COSERN a inteligência e a sensibilidade para investir na beleza, na criatividade e no bom gosto. Se bom gosto e competência se espalhassem em outras áreas da cidade, no setor público e no privado, muito em breve seríamos uma cidade de Primeiro Mundo, para usar uma comparação do agrado de muita gente.

Um comentário:

  1. Prezado Aécio, gostaria somente de te Lembrar que o meu nome artístico é "Nonato SANTOS". De onde você tirou esse "Silva"? de Tony?

    Na verdade quero te parabenizar pelo exelente artigo. Valeu.

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