Aécio Cândido
Tenho um amigo em Açu, músico, que ainda não viu o Oratório de Santa Luzia. Açu é bem ali, a 70 quilômetros, o Oratório está sendo apresentado pelo terceiro ano consecutivo, e eu considero esse desconhecimento, num homem sensível, um pecado grave. Descubro ao longo da semana universitários mossoroenses mergulhados na mesma escuridão. Acho um crime. Disse a meu amigo que, na hipótese de uma falta total de transportes entre Açu e Mossoró, valeria a pena vir a pé. A beleza do espetáculo paga, e com sobras, o sacrifício das doze horas de caminhada. Não acho que exagero. Não se trata de um espetáculo qualquer. O Oratório é o espetáculo mais bem acabado a que a cidade já assistiu. Não é pouco. Mossoró é uma cidade de tradição teatral. A história local registra a atuação de grupos nos anos 60 com montagens de clássicos do teatro ocidental (Édipo Rei, por exemplo) e do teatro brasileiro (Eles não usam black-tie, de Guarnieri, e Dona Xepa, de Pedro Bloch). Os anos 70 retiraram o teatro de cena para dar lugar à militância política, em grande parte inspirada nele. Os anos 80 foram de teatro político, mambembe e militante (Grupo Terra, se me permitem uma auto-citação). Os anos 90 foram de agitação teatral, de ocupação de espaços físicos (o Cine Caiçara) e estéticos (Grupo Nocaute à Primeira Vista). O novo século se iniciou com um ciclo diferente, o dos grandes espetáculos ao ar livre, assinados por um encenador nacionalmente reconhecido (Auto da Liberdade, Chuva de Balas no País de Mossoró, Oratório de Santa Luzia). Em toda esta história, o Oratório é o espetáculo de maior harmonia, equilíbrio e graça. É também o de maior inspiração.
O Oratório reúne, talvez mais por acaso do que por determinação, talentos muito especiais, e o que resulta daí é um grande espetáculo. O encontro de João Marcelino, diretor, com Danilo Guanais, autor da música, Marcos Leonardo, criador do figurino e adereços, Tony Silva, a grande artífice da emoção, e Clézia Barreto, coreógrafa, não é algo que possa acontecer todo dia em qualquer esquina. Encontros desta natureza só de décadas em décadas. Temos aí um conjunto de talentos, de criadores luminosos, que o Rio Grande do Norte, no seu encabulamento de província, ainda não soube apreciar e reverenciar com toda a intensidade que eles merecem. A música de Danilo Guanais é majestosa. No Oratório, ela é responsável por muito da dramaticidade e da emoção do espetáculo. João Marcelino é o encenador cerebral e emotivo, nordestiníssimo e universal. Sua concepção de espaço, de volume, de cor, de movimento, de intensidade emocional produzem um espetáculo que embebeda os sentidos. Quem vê a suntuosidade das roupas e dos adereços não pode imaginar que ali estão canudinhos de plástico, palitos de churrasco, pegadores de roupa, abridores de lata de refrigerante e buchas de louça esculpindo o luxo e a miséria de uma época. É o louvor de Marcos Leonardo à criatividade. Tony Silva vive hoje uma fase luminosa e a maturidade artística construída ao longo de duas décadas de interpretação contínua a coloca ao lado das maiores atrizes do teatro brasileiro. Clézia veste o espetáculo de leveza.
Espetáculos como o Oratório - pela grandiosidade, pelo número de artistas que envolve, pelos objetivos que possui - correm o risco de produzirem uma encenação desigual, sem harmonia, com um ou dois atores brilhando em cima da figuração de gente excessivamente amadora e sem maior expressividade em cena. Não é o caso, absolutamente. O Oratório, em sua terceira versão, é um espetáculo homogêneo, limpo, ágil, afinado, sem desníveis de interpretação. A presença de Tony Silva, num de seus maiores papéis, o da cega Nicácia, tem o brilho fortíssimo de sua marca interpretativa, mas não compromete em nada a interpretação dos outros. O destaque de uma ou outra interpretação fica por conta dos detalhes e dos grandes achados de composição dos personagens, como é o caso da mão nervosa da cega Nicácia, que se abre e fecha freneticamente, lembrando algumas cegas de nossa infância nordestina, ou a voz de baixo de Nonato Silva, sem agudos de qualquer espécie, para compor um bispo que é autoridade mas que também é ternura. Esse equilíbrio é talvez a marca mais admirável do espetáculo.
Mas tem mais. João Marcelino é o mais teatral dos diretores desse novo ciclo. A função do teatro é contar, limitado pelo espaço do palco, uma história para o espectador. Mais do que contar, fazer viver. Para simplesmente contar uma história existe o romance, o conto, a novela. O teatro faz personagens viverem uma história, transitando em vários lugares, expressando variadas emoções misturadas em diversos tempos. Se o cinema mostra, o teatro sugere. Sugere a passagem do tempo, sugere os espaços por onde o personagem se movimenta. E sugestão é transmutação de uma coisa em outra. Daí porque no Oratório, o cavalo é a simulação de um cavalo, com as componentes que o imaginário medieval produziu de um cavalo endemoinhado que serviu ao martírio de uma virgem - botando fumaça pelas ventas e fogo pelos olhos. Esta é a representação verossímil de um imaginário fantástico. Mas isto não é tudo: o cavalo é feito de ferro, com dois tambores de metal como corpo, seguindo um desenho esquemático infantil. O cavalo é, enfim, uma solução teatral. E de soluções genialmente teatrais está cheio o trabalho de João Marcelino. Porque o diretor precisa criar soluções para se sair do impasse que lhe impõe o espaço cênico. Ele só tem um, e esse um precisa ser todos. Ou seja, o trabalho do diretor é tornar inteligível num só espaço todos os outros espaços por onde a história circula.
E como teatro não é só o que ocorre no palco, impressiona que Mossoró reúna uma equipe de produção, Jocelito Barbosa à frente, tão precisa no seu trabalho. Reconheça-se também à COSERN a inteligência e a sensibilidade para investir na beleza, na criatividade e no bom gosto. Se bom gosto e competência se espalhassem em outras áreas da cidade, no setor público e no privado, muito em breve seríamos uma cidade de Primeiro Mundo, para usar uma comparação do agrado de muita gente.
Prezado Aécio, gostaria somente de te Lembrar que o meu nome artístico é "Nonato SANTOS". De onde você tirou esse "Silva"? de Tony?
ResponderExcluirNa verdade quero te parabenizar pelo exelente artigo. Valeu.