(Artigo publicado no jornal Gazeta do Oeste em 21 de outubro de 2000)
Aécio Cândido
Filosofia da Praxis é o título de um livro de Adolfo Sánchez Vázquez, pensador mexicano bastante apreciado e citado na UERN, há bons 20 anos, por jovens alunos e professores de esquerda. Livro denso, referência na sua área, trata da razão agindo sobre o mundo, isto é, da razão convertida em ação eficiente, transformadora.
Relembro o livro e a veneração a ele porque a resistência ou, para falar de modo mais brando, o pouco caso feito à avaliação das nossas práticas na instituição e ao planejamento dessas práticas por parte de alguns amigos dessa época parece revelar que estes ou esqueceram o que o livro dizia ou não o leram com a devida acuidade ou, ainda, têm alguma dificuldade de estabelecer a ligação entre um conhecimento abstrato e a realidade que esse conhecimento pode iluminar.
Relembro a definição de praxis, já não sei se dada pelo livro ou posteriormente por algum de seus comentadores, sintetizada numa fórmula simples e engenhosa: praxis = ação/reflexão. A mim, neste momento, basta-me a definição. Ela é sintética, mas contém o essencial do que desejo falar: a praxis não é o fazer aleatório e cego, mas o fazer direcionado, a ação sobre o mundo submetida à reflexão antes e depois de ser realizada. É estranho que isso seja mal compreendido dentro da universidade.
Não é ocioso lembrar que a universidade, desde seu nascedouro, se instituiu como lugar da Razão. E a Razão, na sua versão operacional, persegue a previsão, a antecipação dos resultados, o que, para a instituição, se materializa com o nome de planejamento. O planejamento é a tentativa da razão de tornar o futuro menos indeterminado e desconhecido.
Essa visão do planejamento é moeda corrente em qualquer empresa ou, em sentido menos estrito, em qualquer corporação. Não tenho nenhuma simpatia por aqueles que pensam que a universidade pode ser gerida como uma empresa qualquer e que, como tal, indicadores tangíveis, resultados palpáveis e, em última instância, aquilo que pode ser convertido imediatamente em moeda seja o aferidor de sua eficiência. Mas também não creio que a razão esteja com aqueles que pensam que a universidade é uma instituição tão singular que bastam alguns princípios gerais, abstratos e difusos para guiar bem seus atos. Contra os primeiros, acho que boa parte do dinheiro investido na universidade é para ser “perdido” mesmo, no sentido de que a curto prazo nenhum produto negociável no mercado pode surgir daquele investimento; contra os segundos, acho que todo princípio pode ser traduzido por indicadores, ainda que aproximados, senão, para usar uma imagem do discurso religioso cristão, permaneceremos ad infinitum avalizando a ruptura entre fé e obras. Por fim, ainda contra os segundos, creio que o que se pode quantificar e medir deve ser quantificado e medido.
Mas por que tanta resistência ao planejamento dentro da nossa universidade?
A resposta neste caso, como em tantos outros, deve ser buscada na esfera da cultura. Penso enxergar em nossa cultura vários sinais de recusa ao planejamento e, em escala mais ampla, ao pensamento racional. O pensamento racional associa o indivíduo a suas ações. Isso é o avesso do pensamento religioso, mágico, sempre disposto a atribuir a um deus criador a responsabilidade pelos atos da criatura. E, paradoxalmente, o pensamento de esquerda no Brasil em grande medida alimentou essa cultura. Onde havia Deus colocou-se o Estado e as forças que o regem como determinantes da ação dos homens. Também aí não há lugar para o indivíduo. Num lado, o crente se acha sem merecimento para atrair a atenção de Deus e resigna-se ao destino atroz; no outro, o indivíduo se sente impotente e imobilizado diante da determinação avassaladora do Estado que, manipulado, escreve para esse indivíduo um roteiro de catástrofes.
Parecemos não perceber que a recusa, a resistência ou o descaso ao planejamento nos obriga à ação caótica, a fazer “na doida”. É curioso que a universidade, tão crítica em relação à irracionalidade dos poderes do Estado brasileiro, exatamente pela ausência de um projeto planejado de intervenção social, repita internamente o que critica extra-muros. Na UERN, não temos, pra valer, plano de ação da unidade, não temos plano de ação do departamento. E encontra-se grande resistência quando tal é proposto. Como em tudo, há logicamente as exceções.
Quem planeja não teme avaliação. O nervosismo e, no limite, o boicote à avaliação na universidade é resultado dessa falta de planejamento.
Num certo sentido, a universidade (falo da UERN especificamente, mas creio também estar falando da universidade brasileira em geral) é uma instituição amadora. E o que é o amadorismo? É a ação justificada unicamente pelo prazer subjetivo que ela produz em quem age e não pelos resultados que a ação provoca. As instituições existem para responderem a necessidades. Essa resposta, resultado de um conjunto encadeado de ações, é algo racional, no sentido de que ela é detalhadamente arquitetada em razão de um objetivo. Qual o objetivo da universidade? Transmitir o conhecimento estabelecido, aquele que a tradição consagrou como conhecimento necessário à reprodução da cultura, e criar conhecimento novo, através da pesquisa. Para construir esse objetivo como resposta, a universidade precisa planejar e articular ações que produzam resultados. Entre um ponto e outro, funções são estabelecidas e responsabilidades, determinadas. Isso cria lugares que precisam ser pensados como articulados a um todo.
Fica claro, portanto, que um problema a ser enfrentado na UERN é a resistência ao planejamento e, em conseqüência, a resistência à avaliação. Essa resistência, é claro, não se manifesta de modo articulado, consciente, frente à frente, peito a peito. Ela se manifesta de modo difuso, através de engajamentos fracos, de não comparecimentos a reuniões, etc., quer dizer, ela se manifesta através daquilo que a gíria trata como “fazer corpo mole”. É estranho esse comportamento para quem, algum dia, já se confessou adepto da “filosofia da praxis”.
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