Aécio Cândido
Retorna ao palco do Dix-Huit Rosado a peça Medéia – um fragmento, nesta quinta e sexta-feira. Concebida inicialmente para um espaço minúsculo, de 30 a 40 cadeiras, a peça fez temporada o ano passado numa antiga garagem do Alto da Conceição. No palco do Dix-huit Rosado a encenação funciona também muito bem, embora se perca a proximidade com os atores, a escuta das respirações e a impressão de que também os espectadores terminarão o espetáculo suados. Não dá para explicar muito bem, mas essa quase invasão do palco pela platéia, a imersão nos cheiros e nos ruídos do espetáculo criavam uma mística muito particular e era mais um elemento para nos apaixonarmos por ele.
Porque Medéia – um fragmento é apaixonante. Diante do impacto do cenário, da sombra dos atores em frenético movimento pelo palco, o primeiro pensamento que nos vem à cabeça é o seguinte: o teatro pode se dar ao luxo de dispensar a tecnologia. De fato, Marcelo Flecha, o diretor, não precisou dela para recriar o texto de Eurípedes, escrito há quase dois mil e quinhentos anos.
O que dirá o espectador sobre um espetáculo cuja iluminação, em 2007, dispensa toda a parafernália de refletores, canhões e gelatinas, e, em seu lugar, usa apenas velas, essa invenção tão antiga e tão ausente de nosso cotidiano? Dirá certamente que o efeito plástico de 500 velas acesas é não apenas belíssimo, mas que é a melhor forma de sublinhar o desespero e o mergulho na escuridão de um personagem demasiadamente humano em sua imperfeição. Aí parecerão supérfluos recursos tecnológicos mais sofisticados. Desse modo, o teatro se reduz ao seu essencial vital e só requer a emoção dos atores e a força de um texto para se consumar em ato de comunicação e magia.
Harold Bloom, o grande crítico literário americano, sustenta que a sabedoria só se encontra na literatura. De fato, a imprensa nos dá informação, a ciência, conhecimento; mas a sabedoria quem nos dá é a literatura. É ela quem mais eficientemente nos aproxima dos muitos mundos existentes no interior dos homens e fora deles. Aceito isto, o que dizer do teatro, que é mais do que literatura? Teatro é literatura com alma, vida pulsante pela ação de atores e dos recursos de cena. Medéia, como texto literário, é uma exemplificação contundente desta tese. Talvez não haja outra personagem em que o ciúme, o ódio e a vingança – esses sentimentos tão negativamente humanos - sejam mais intensamente revolvidos. E também tão sem complacência consigo mesma, já que não exita em castigar-se castigando o amante através do assassinato dos filhos. Há uma racionalidade, talvez incômoda, no equilíbrio psíquico, se quisermos falar assim, de Medéia. A personagem se equilibra numa loucura que não perde o senso, numa confusão de sentimentos desvairados em que sua monstruosidade encontra justificativa. Mas tudo isso é literatura. Quem a retira deste campo e lhe dá vida é Tony Silva, mais uma vez magistral em cena, que extrai da alma gritos dilacerantes e os empresta ao desespero dessa Medéia solitária e vingativa. Bela surpresa é a interpretação equilibrada de Damásio Costa. A presença de Marcos Leonardo e de Joriana Pontes acrescenta densidade ao espetáculo.
O desafio de qualquer encenador é encontrar o justo equilíbrio entre a intenção do texto e as combinações que a linguagem do teatro colocam ao seu dispor. A montagem que aqui se vê é um dos espetáculos mais belos, harmônicos e exatos que já se viu e se montou em Mossoró. A beleza plástica da iluminação, convertida em cenário, os movimentos cênicos e as interferências do coro, o ritmo frenético da interpretação dos atores são soluções que dão vida ao belo texto de Eurípedes.
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