(Artigo publicado no Informativo UERN de janeiro-fevereiro de 2007, p. 12)
Aécio Cândido
“A invenção e a avaliação de um teorema ou de uma teoria da física pressupõem a
existência de um meio social propício que incentive a criação e permita a
avaliação. Do mesmo modo, uma teoria política ou uma inovação técnica ou
intelectual, para serem aceitas, pressupõem um terreno social favorável”.Raymond Boudon (Tratado de Sociologia, p. 519)
No ano 2000 eu trouxe à UERN, como já trouxera outras vezes e como continuei a trazer em anos seguintes, o professor Alípio de Sousa Filho, sociólogo da UFRN, para falar para meus alunos de Ciências Sociais. Naquele ano, Alípio havia lançado um pequeno livro que tratava da universidade de forma bastante diferente de como o tema costumava ser tratado nas assembléias sindicais e nas reuniões dos departamentos. O livro se chamava Responsabilidade intelectual e ensino universitário, e, fundamentalmente, analisava comportamentos de professores em sala de aula. De princípio, o que me chamou a atenção para o livro, afora a amizade que me liga ao autor, foi esse foco sobre o indivíduo. A tradição marxista consumida na universidade brasileira a partir dos anos 1960 sepultou como reacionárias e anti-científicas quaisquer análises que tomassem o indivíduo como referência. Esta visão de mundo, no interior da universidade, e no serviço público brasileiro em geral, chega ao paroxismo de referir-se à universidade como eles (o governo, o Estado, a classe dominante, o Imperialismo, etc.), mimetizando-se e não se enxergando, em absoluto, como uma variável do problema.
A palestra do professor Alípio causou um certo mal-estar entre os alunos, grande parte deles militantes, via movimento estudantil, de partidos messiânicos. Era a época FHC, e o neoliberalismo do presidente era responsabilizado por tudo: pela má qualidade das aulas, pelo pouco aprendizado dos estudantes e pelo chamado sucateamento das universidades. Eu provocava os alunos, e certamente desencadeava antipatias sinceras, ao dizer que FHC não era tão poderoso a ponto de me impedir de ser um “bom” professor, de dar “boas” aulas. Havia coisas em minha profissão que dependiam do Estado, obviamente, mas a minha paixão por ensinar, o meu compromisso em dar o conteúdo programado, em explicar os textos da melhor forma que me era possível, a honestidade intelectual em confrontar, respeitosamente, teorias sociais díspares, etc. não dependiam do Estado. E, vivendo num Estado de Direito, não via comprometida a minha liberdade. Eu tinha liberdade absoluta, para defender qualquer ponto de vista em sala de aula, porque não havia olhos do Estado a me vigiar. Eu tinha mesmo liberdade demais: eu nunca tinha passado por uma avaliação, o diretor da minha faculdade não me cobrava nada, nunca tinha procurado saber se eu chegava na hora, se eu chegava com aulas preparadas ou se as improvisava, nunca me questionara sobre o programa adotado nas minhas disciplinas, etc. Os alunos, em geral, não aceitavam facilmente este discurso. Eles “gostavam” do discurso que colocava todo o poder de produção do social nas mãos do Estado e que apresentava o indivíduo como submisso, simples joguete de forças sociais poderosas e incontroláveis, vítimas passivas, impotentes ou inconscientemente conformadas. Ao mostrar fatos que contrariavam essa crença, eu pretendia que eles se tornassem melhores sociólogos, isto é, que, a partir da consideração dos fatos, de sua observação, comparação, quantificação e representatividade, desconfiassem das explicações excessivamente genéricas, enfim, que se sentissem sem amarras para pensar ou, em outras palavras, se sentissem livres para permanentemente confrontar teorias com fatos. Porque nós todos somos facilmente prisioneiros de nossas crenças. Precisamos a todo momento, a fim de melhor caminharmos no mundo, dessa confrontação. Este é o meio mais seguro para não cegarmos de vez. Esta postura vigilante serve para as crenças científicas, para as crenças políticas, para as crenças estéticas. Serve para balizar todo aquele conhecimento que, em maior ou menor escala, reivindica algum grau de objetividade e de racionalidade.
Mas essa divagação longa tem alguma coisa a ver com o título do artigo? Tem, sim. Responder afirmativamente ao título significa colocar nas mãos do Estado, financiador maior da universidade, a responsabilidade exclusiva pelos problemas da instituição. Se o problema é dinheiro, se com ele tudo se resolve magicamente, basta reivindicar do Estado o aumento de verbas, pressioná-lo através das greves anuais e tudo estará resolvido. Se a universidade fosse apenas prédios e equipamentos, o raciocínio estaria corretíssimo e tudo seria bem mais fácil. Mas não é. Universidade é transmissão e produção do saber. Neste caso, infra-estrutura é apenas um dos elementos da equação e não a equação inteira.
Há alguns meses, durante uma reunião do seu Fórum, pedi aos diretores presentes para participarem de um exercício simples. Pedi-lhes que me respondessem a duas perguntas. Uma delas era a seguinte: Identifique um problema na UERN que possa ser resolvido sem dinheiro (ou com muito pouco). Houve quem achasse que a pergunta não tinha sentido, já que a resolução de qualquer problema institucional pressupõe dinheiro, em geral muito dinheiro. Mas houve quem se dispusesse a pensar e a fazer tal identificação. Problemas de relacionamento entre servidores, de desconhecimento das atribuições do cargo, de cumprimento da jornada de trabalho, de composição dos Conselhos Superiores, de racionalidade nos gastos, de adoção do expediente corrido, etc. foram apontados como problemas sérios e passíveis de serem resolvidos apenas com “golpes” de gestão. Trata-se de vigiar as cláusulas do contrato e de tornar o conjunto da instituição mais ágil em razão do melhor funcionamento das partes. Isto significa cada um conhecer melhor sua função e melhor desempenhá-la.
O orçamento da universidade se compõe de três itens: pessoal, custeio e investimento. Sejamos justos: o Estado tem cumprido religiosamente a parte referente a pessoal. Há pelo menos 15 anos não temos salários atrasados e desde um bom tempo conhecemos com a antecedência de um ano o calendário de pagamento, o que, admitamos, é uma proeza significativa de planejamento financeiro. Ora, podemos reclamar de tudo, menos de que o Estado não está cumprindo com a parte do contrato naquilo que diretamente nos diz respeito. Se o serviço está pago, por que não fazê-lo bem? Há nesse trabalho prestado uma boa parte que depende, para ser bem prestado, da disponibilidade de uma certa infra-estrutura (o que se pode chamar de condições de trabalho), mas há outra boa parte que não depende. Depende de algo meio difuso, o compromisso, situado na esfera do contratado, e depende também de avaliação, algo institucional, situado na esfera do contratante. Eis aí os alvos a serem atacados: compromisso, pelo lado do indivíduo, e avaliação, como exigência do cumprimento do compromisso, pelo lado da instituição. Se falta de compromisso se soma a infra-estrutura deficitária aí tudo se complica. Ainda mais.
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