domingo, 15 de fevereiro de 2009

O Grupo Escolar Vidal de Negreiros: pequeno inventário de lembranças

(Artigo escrito em setembro de 2005, a pedido da jovem diretora do Grupo Escolar Vidal de Negreiros, em Cuité, Paraíba, onde fiz meus estudos primários, para responder à pergunta “o que lhe ficou de lembrança do Vidal?” e ser exposto numa festa de ex-aluno a que, infelizmente, não pude comparecer)

Aécio Cândido

É curioso o conceito de educação dado por Einstein: “educação é aquilo que a gente lembra depois que esqueceu tudo”. Como homem de pensamento, Einstein não se interessou apenas pela natureza da luz ou pela relação entre espaço e tempo, mas também pela natureza do conhecimento e por suas formas de reprodução entre os homens. Certamente também é educação a memória dos sentimentos, a retenção das impressões, o gosto que nos deixou a estréia nas práticas e hábitos sociais. O aprendizado pressupõe memória. Um amigo, hoje, físico como Einstein, repete pra mim: aprender é lembrar. Certamente se baseia nisso a teoria da aprendizagem de Ausubel, um psiquiatra ex-professor da Universidade de Columbia, Nova Iorque, chamada de aprendizagem significativa.

O que me ficou do Grupo Escolar Vidal de Negreiros, dos quatro anos de convívio com suas salas, seus corredores, o chão do campinho de futebol, os cajueiros, os coqueiros; com as professoras, Dona Camélia, Dona Ismália, Seu Heleno, os colegas? Um mundo de mulheres e poucos homens. Um balanço apressado, alinhavado a esta altura da vida, diz que não foi pouco o que me ficou, o que não esqueci.

Não esqueci que lá fiz discursos, num tempo em que a oratória era uma arte cultivada. “Sinto-me honrado em ser designado para falar sobre vulto tão importante...”, era assim que começava “meu” primeiro discurso, uma saudação a Vidal de Negreiros, patrono do nosso grupo escolar, e falava do seu papel na história da Paraíba. Esqueci os detalhes do que falei. Ficou a lembrança do ritual, da solenidade do momento, do arranjo das palavras, do nervosismo enfrentado a golpes de encorajamento de minha mãe (o frio na barriga, as pernas trêmulas, a vontade opressiva de urinar). A lembrança do esforço para decorar o texto escrito por uma das professoras, talvez Dona Vera, filha de Seu Zacarias, comerciante que durante muitas décadas alimentou a moda em Cuité com o sortimento de sua loja de tecidos e por algum tempo pôs lenha nos devaneios da juventude com a introdução do primeiro aparelho de televisão na cidade. Devia ter uns 8 anos à época do discurso.

No Vidal - para usar a denominação de hoje, porque no meu tempo se dizia simplesmente no Grupo, e todos sabiam a que lugar a gente se referia -, vi e fiz teatro. Chapeuzinho Vermelho educou minha fantasia em inumeráveis versões.

Não esqueci a forma protocolar de relato adotado numa ata. É que lá havia um grêmio e suas sessões eram relatadas em ata. Marliete Fonsêca, como secretária, era quem as redigia, isso nós já no quinto ano, quando essa fase de estudos se chamava Primário e contava com um quinto ano que nos preparava para o Exame de Admissão ao Ginasial. Para que me serviram as atas de Marliete? Elas me apuraram o ouvido para o manejo da língua e me despertaram para a possível fidelidade do texto. Creio que muito cedo aprendi a distinguir estilos de comunicação escrita.

Aprendi boas maneiras: como se comportar à mesa, como enfrentar com elegância bananas e laranjas, manejando com destreza garfo e faca, quando o costume de casa, que não devia ir à praça, estava mais para a colher do que para esses talheres complicados. Dona Vera de Seu Zacarias, depois Venâncio por casamento com Milton, filho de Seu Benedito, comerciante e industrial do agave num tempo em que essa fibra criava riqueza e erguia palacetes, um homem com charme de governador, mais uma vez ela, era a professora dessas artes de saber comer com distinção, para não ser confundido com outros animais. Camélia Pessoa, num outro sentido, completou esse aprendizado. Diretora dedicada e sem medo de exercer a autoridade que se espera de alguém que tece destinos, impunha a disciplina na fila de entrada para as salas-de-aula, o cumprimento do horário, o respeito ao outro. Estabanados em casa, no Grupo aprendíamos a contenção. Com fama de boa professora de Matemática, infelizmente não fui seu aluno.

Não me esqueci das aulas de redação de Dona Milagres, filha de Seu Benedito Maroca, professora de inteligência fina e didática cativante. A partir de paisagens ou de figuras humanas trazidas por ela em cartazes, praticávamos a descrição. Converter imagens em linguagem escrita foi pra mim um exercício fundante de muitos outros aprendizados na vida. Também aprendi com ela expressões algébricas e, já no ginásio, estudando em colégio interno, surpreendia a muitos colegas minha desenvoltura em lidar com parênteses, colchetes e chaves e com as operações aritméticas neles contidas. Com ela armazenei conhecimentos gramaticais, sobre verbos transitivos e seus complementos, que um pouco mais tarde impressionaram outros professores. “Diga aí o que é um objeto direto”, me incitava o prof. Joabel nas ruas de Currais Novos. Eu explicava direitinho, com ares de professor precoce, embora com certa timidez, e me soava um pouco sem nexo a admiração que causava uma explicação que me parecia tão fácil. E óbvia. Tinha à época 12 anos mal completados. À distância, Dona Milagres era, na verdade, a responsável pelo meu showzinho.

A sopa do Vidal era um espetáculo de comunhão. Não havia merenda escolar como há hoje. O Estado era mais pobre, nossa economia era mais raquítica. Daí, juntávamos nossas pobrezas e tínhamos uma festa. Era como uma festa que eu via os dias de sopa. Um trazia um pouco de arroz, outro um pouco de macarrão, batatinha, cenoura pouco se conhecia, não lembro bem se havia, mas havia tomate e coentro; a carne era rara, mas comparecia. E estava aí uma sopa maravilhosa. A impaciência pelo recreio era maior nesses dias.

O Grupo Escolar Vidal de Negreiros foi a fonte primeira de uma paixão que deu norte à minha vida: a paixão pelo conhecimento. Ele me abriu esse caminho. No Ginásio, pensei manter um caderno em que eu anotasse cada coisa que aprendesse no dia. A intenção resistiu a alguns meses, mas a paixão me acompanha até hoje. Escola pública pode ser boa: o Vidal no qual estudei está aí pra provar.

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