domingo, 15 de fevereiro de 2009

Formação superior e formação cultural


(Artigo publicado no Informativo UERN de agosto de 2006, p. 12)

Aécio Cândido

Em cidades como Moscou e Londres, os estudantes universitários lotam os teatros, os museus, as livrarias. Há muitos, e esses espaços culturais não se ressentem de falta de público. O consumo cultural é uma necessidade dos estudantes, adquirida na família e desenvolvida na escola. A Universidade Laval, no Canadá, possui no seu campus cinco teatros. E durante o inverno todos funcionam a partir da quinta-feira. Quem os freqüenta? Basicamente os universitários. A cidade de Quebec, onde fica essa universidade, menor do que Natal, tem 25 bibliotecas municipais, nenhuma delas com menos de 30 mil títulos, 56 museus e sítios históricos, quase 100 entidades profissionais de criação artística (companhias teatrais, grupos folclóricos, orquestras, ópera, companhias de dança, etc.). Deve ter perto de uns 20 teatros, sem contar aqueles ligados a universidades e colégios. Esse inventário indica que há um entorno cultural forte e que ele se oferece como complemento à educação escolar.

Que a educação não é exclusiva da escola, que ela ocorre também na família e na “sociedade em geral” sabemos todos nós. A sociologia da educação produzida na América Latina no início dos anos 80 martelou insistentemente essa idéia, usando-a para valorizar o conhecimento espontâneo, informal, sobretudo de estudantes adultos, aprendido fora da escola e para relativizar o peso existencial do analfabetismo. A idéia é interessante, é pedagogicamente fecunda, mas seu excesso, como tudo, gera distorções. E a distorção que ela gerou foi a impregnação de um certo anti-intelectualismo e de uma valorização exagerada do conhecimento espontâneo... na escola. Escola anti-intelectual é mortal para o espírito. Também para o desenvolvimento econômico. O excesso se dá pela adoção apaixonada de, pelo menos, dois pressupostos: o de que tudo que é natural é bom e o de que todo conhecimento se equivale. Daí, tanto faz o conhecimento que desemboca na resolução de uma equação de 2º grau como o conhecimento prático operado por um “menino de rua” para conseguir alguns trocados; não se enxerga conseqüências sociais diferentes entre atores que mergulham na apreciação de uma música de Chico Buarque e aqueles que se acotovelam para uma apresentação do Calcinha Preta. A idéia de elite intelectual e de formação superior como uma formação de elite, em contraponto à cultura de massa e ao senso comum, foi sacrificada em grande medida dentro da universidade. Desse modo, temos produzido gente com formação superior, mas inculta.

É consenso que a boa educação comporta uma formação científica, o desenvolvimento de uma sensibilidade artística e de uma sensibilidade moral e, claro, uma formação profissional. É a isso que se refere a idéia de formação integral do homem. Desses quatro aspectos da formação, dois pertencem mais diretamente à escola, um pertence à sociedade geral (embora caiba à escola iniciar o aluno nos seus estágios mais jovens), e o outro, em grande medida, à família. A formação científica diz respeito à aquisição do pensamento científico, traduzido pelo domínio do método e de alguns conceitos importantes para compreender a ciência e a tecnologia que nos cercam no mundo de hoje. Ela deve provocar a desobstrução da mente em relação à construção do conhecimento. A formação profissional diz respeito à aquisição de competências e de saberes próprios ao exercício de uma dada profissão. Por sua natureza fortemente especializada, dada pelos conhecimentos manipulados e pela infra-estrutura requerida, essas duas formações competem à escola. A formação moral se refere à aquisição de valores necessários à vida social harmônica e isso cabe, em primeira instância, à família. A educação artística, a formação do gosto pelo belo e pela reflexão sobre ele, dá-se no convívio com a cultura, quando esta é capaz de promover uma criação artística de qualidade , isto é, que transcenda o simples entretenimento e desemboque em algo que possa ajudar à melhoria do indivíduo e de sua participação social. Não é o caso entre nós. A produção artística e cultural consagrada pelos meios de comunicação e mesmo estimulada pelo poder público não tem as características aqui referidas. Desse modo, enfrentamos dois problemas: o estudante, em geral, entra na universidade com um forte déficit na sua formação cultural – leu pouco, conhece pouco a literatura, o teatro e o cinema, viajou pouco e pouco contato teve com as idéias mais interessantes sobre o nosso tempo. Este é o primeiro problema. O segundo é que a própria universidade, seus professores, pouco o estimula a perceber que a formação cultural é fundamental para a sua formação superior, ou que aquela daria a esta uma amplitude maior. O que é estimulado, o que lhe é fornecido como acesso é aquilo que a indústria cultural deseja vender. Mas, mesmo em Mossoró, marginal à produção da indústria cultural, temos uma produção artística de boa qualidade. Paradoxalmente, estudantes universitários, público potencial dessas manifestações, não a consomem.

A idéia de flexibilização curricular, que, enfim, começa a tomar forma na universidade, reserva para a FORMAÇÃO COMPLEMENTAR do aluno uma carga horária de 200 horas. A proposta que aqui levantamos – originária de conversas com Carlos Ruiz, Ana Morais e Celito Barbosa – é que os Projetos Pedagógicos dos cursos precisam privilegiar a formação cultural nessa formação complementar. Desse modo, o estudante, independentemente do curso, terá a obrigação de, durante a sua formação, assistir a espetáculos de teatro, de dança, de música (erudita e popular), a freqüentar palestras, etc. A forma de avaliar essa participação, e de evitar que ela se transforme em mais uma boa intenção a entulhar o inferno, não é difícil de ser estabelecida.
A omissão da família – por todas as razões que a Sociologia pode facilmente explicar – e da sociedade geral neste quesito não é razão para a universidade também se omitir, achando-se impotente. Enfrentar desafios aparentemente invencíveis é missão de qualquer elite que se preze.

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