(Artigo publicado no Informativo UERN, em março de 2001, p. 10)
Aécio Cândido
O século XVII foi, em certa medida, o século de ouro da ciência política. A idéia de contrato social nasceu com ele e esse mesmo século abrigou os maiores pioneiros nesse campo: o alemão Johannes Althusius e os ingleses Hobbes e Locke.
A noção de contrato social é uma dessas idéias fortes que se produz de tempos em tempos e cuja fecundidade revela-se na capacidade de alterar o ritmo da convivência humana. Trata-se de uma idéia que, resistindo ao tempo, tem ganho a maturidade de novos sentidos e precisões.
No entanto, apesar de seus mais de 300 anos, essa noção ainda não se incorporou à cultura brasileira. Formalizada em lei, como a lei do trânsito, por exemplo, ou num simples acordo cotidiano, como o horário de um encontro, o fato é temos enormes dificuldades de cumprir aquilo que foi acordado. Nem cumprimos na esfera privada nem na esfera pública. Os estatutos e regimentos de nossas instituições são em geral peças de ficção, feitos apenas para cumprir o ritual da legalidade. O que é um paradoxo, porque o contrato pressupõe a participação consciente das partes, a concordância racional e racionalizada com os termos do acordo. E ficção se opõe à realidade. Mas entre nós a realidade não goza de muito prestígio. Como herdeiros de uma “cultura de rábulas”, portuguesa, preferimos a retórica, isto é, a realidade dourada em ficção, à palavra simples tradutora do real. Por isso concordamos e aplaudimos tanto o que não compreendemos.
Este é um lado da questão. O outro é que, mesmo compreendendo, não costumamos levar a sério o combinado. A expressão “Papel agüenta tudo” serve como testemunha do descaso com que tratamos os acordos. Daí não ser raro que o estatuto de uma associação, documento fundante da entidade, seja copiado de outra, o que demonstra que pra nós tanto faz, uma vez que o que ali está afirmado não é de fato a expressão de nossa vontade. Seja porque, em algumas situações, não se compreende mesmo os termos do contrato, seja porque, em outras, a noção de contrato parece estranha. Como se vê, falta ao contrato a sua própria essência: a racionalidade que fundamenta a liberdade para concordar ou discordar. Desse modo, em ambas as situações a tolerância ao desvio da norma é a regra. Em ambos os casos o que se constata é a negação do contrato.
O contrato pressupõe a vontade livre das partes entrarem em acordo e a compreensão do que está sendo negociado. A adesão, por fim, é o reconhecimento de vantagens para todas as partes. O acordo é um exercício da razão.
Como a universidade é um campo de domínio da razão, deveríamos esperar que aí fosse fácil o reconhecimento da utilidade dos contratos e a compreensão, em toda sua extensão, do significado dos termos em que eles estão firmados. Puro engano. Na UERN estamos imersos na mesma cultura não-contratualista que é uma marca do país. Temos, cada departamento e faculdade, um regimento interno, onde estão firmadas as normas de conduta, as competências de cada membro, etc., mas em geral esse regimento não serve em quase nada para guiar as ações de ninguém. E tanto não serve que o contrato é desrespeitado nas suas bases mais elementares e nenhuma reação é esboçada. Exemplos: 1) espera-se de um professor com contrato de 40 horas que trabalhe na instituição... 40 horas, mas não é isso o que ocorre sempre; 2) as aulas à noite têm a duração de 45 minutos, mas há uma tolerância exagerada a quem chega na metade e sai antes do fim, seja aluno ou professor; 3) as aulas devem começar às 19 horas e se encerrarem às 22:10, mas poucos, alunos e professores, são os que ultrapassam as 22:00 horas; 4) um professor convocado por seu chefe ou por seu diretor para uma reunião a ela deveria comparecer, uma vez que o tempo da reunião está contabilizado nas 40 horas do contrato de trabalho, mas as reuniões de muitos departamentos e faculdades vez por outra não se realizam por falta de quorum; 5) o expediente pela manhã deve começar às 7 horas, mas grande parte dos funcionários só começa a chegar às 7:30 h.
Todos os exemplos dados dizem respeito ao elementar, ao básico do contrato. O regimento interno, isto é, a letra do contrato, na medida em que prescreve as ações esperadas de cada um, determina também as sanções para quem não as realiza. Mas estas não são usadas. Uma das razões que explicam a omissão da autoridade, legitimamente constituída no contrato, é que, escudados numa noção confusa de democracia, já não fazemos diferença entre arbitrariedade e respeito à letra do contrato.
Fazemos discursos, na academia, contra a impunidade na sociedade brasileira, mas entre nós fica impune o professor que não vai a nenhuma reunião do departamento, o que começa a aula atrasado e sai antes da hora, o que dá menos da metade do conteúdo previsto, o funcionário que não chega na hora, o aluno que não assiste aula. Se nós, nas esferas que nos competem, não cumprimos com as responsabilidades que nos cabem, como podemos cobrar responsabilidades de quem orbita em outros espaços?
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